Salvação é um tema que sempre gerou e continua a gerar curiosidades e anseios no cerne da alma humana. Certo jovem abastado procurou Jesus e perguntou: “Bom Mestre, que hei de fazer para herdar a vida eterna?” (Mc 10.17). Em outra ocasião, um dos doutores da Lei, querendo experimentar a Cristo, questionou: “Mestre, que farei para herdar a vida eterna?” (Lc 10.25).
Alguns sistemas de crença dizem que a salvação se dá por meio de boas obras, atribuindo mérito ao ser humano e invalidando o sacrifício de Cristo por meio de uma auto salvação. Outros sistemas pregam uma esperança baseada em constantes reencarnações, nas quais o esforço humano as proporcionará melhores condições em suas vidas subsequentes.
Há, ainda, o sistema universalista, o qual prefere ludibriar a consciência do homem sob o falso entendimento de que no final das contas todos serão salvos, independentemente da Obra Vicária de Cristo e sua eficácia para com aqueles que O receberam (Jo 1.12). Todas essas posições são contrárias à perspectiva da Palavra de Deus (cf Ef 2.8,9; Hb 9.27; Jo 3.16).
Neste artigo poderemos observar os dois principais sistemas que discorrem sobre a salvação do homem dentro do protestantismo. O primeiro se baseia na predestinação divina, cuja atuação é unicamente monergista, e o último no sinergismo entre Deus e homem, cuja atuação se dá através da graça preveniente e do livre-arbítrio humano.
Antecedentes históricos
Esses dois conceitos paradoxais remontam aos dias de Agostinho, o qual defendia que o homem é predestinado por Deus e, portanto, não possui capacidade de escolher Cristo e Sua obra salvadora. Para que o homem seja salvo, é necessário que Deus atue com sua graça irresistível e o regenere.
As doutrinas soteriológicas de Agostinho foram formadas antes e durante o embate da controvérsia pelagiana. Pelágio foi um austero monge e popular professor em Roma. Sua austeridade era puramente moralista, ao ponto de não conseguir conceber a ideia de que o homem não podia deixar de pecar.
Pelágio estava mais interessado na conduta cristã e queria melhorar as condições morais de sua comunidade. Sua ênfase particular recaía na pureza pessoal e na abstinência da corrupção e da frivolidade do mundo, resvalando no ascetismo.[1]
Ele negava a ênfase de Tertuliano ao pecado original, sob a argumentação de que o pecado é meramente voluntário e individual, não podendo ser transmitido ou herdado. Para ele, crer no pecado original era minar a responsabilidade pessoal do homem. Ele não concebia a ideia de que o pecado de Adão tivesse afetado as almas e nem os corpos de seus descendentes. Assim como Adão, todo homem, segundo o pensamento pelagiano, é criador de seu próprio caráter e determinador de seu próprio destino.[2]
No entendimento pelagiano, o homem não possui uma tendência intrínseca para o mal e tampouco herda essa propensão de Adão, podendo caso queira, observar os mandamentos divinos sem pecar. Ele achava injusto da parte de Deus que a humanidade herdasse a culpa de outrem e desta forma negava a doutrina do pecado original.
Desta forma, Pelágio passou a ensinar uma doutrina exageradamente antropocêntrica e focada no livre-arbítrio, ensinando que, ao criar o homem, Deus não o sujeitou como fizera com as outras criaturas, mas “deu-lhe o privilégio singular de ser capaz de cumprir a vontade divina por sua própria escolha”[3].
Como Pelágio baseava suas teorias em uma abordagem moralista, entendia que a desobediência do homem vinha do exemplo e dos costumes observados ao redor, podendo pela própria força, alcançar a perfeição mediante grande esforço de sua própria vontade.
Em contrapartida, Agostinho sustentava que Adão fora criado em um estado original de retidão e perfeição e estaria, em seu estado original, isento de males físicos, dotado de alta intelectualidade, bem como num estado de justificação, iluminação e bem aventurança inigualáveis, além de ter a inclinação de sua vontade para a virtude.[4]
A gravidade do pecado de Adão foi tal, que a consequência foi uma tragédia para a humanidade, a qual se tornou uma massa de pecado (massa damnata), isto é, um antro pecaminoso e propagador de pecadores. As bases agostinianas para a doutrina do pecado original se encontravam em passagens como Sl 51; Ef 2.3; Rm 5.12 e Jo 3.3-5.
Uma vez que o homem havia cedido ao pecado, a natureza humana foi afetada obscuramente pelas consequências do mesmo, tornando-se desordenada e propensa para o mal. Sendo assim, sem “a ajuda de Deus é impossível, pelo livre-arbítrio, vencer as tentações desta vida”.[5] Essa ajuda divina para escolher o certo, ou retornar para Deus, era Sua graça, a qual Agostinho define como “um poder interno e secreto, maravilhoso e inefável”[6] operado por Deus nos corações dos homens.
Para Agostinho, a graça divina antevê e provoca cada impulso na vontade do homem. Essa graça é expressão da soberania de Deus, não podendo ser resistida. Para explicar o antagonismo da irresistibilidade frente ao livre-arbítrio, o Bispo de Hipona diz que a liberdade do homem é baseada nas motivações. Sendo as decisões do homem, portanto, um fruto do meio, o homem não regenerado que vive em uma atmosfera de concupiscência escolherá o mal. A graça divina, porém, cura o homem e restaura seu livre-arbítrio, substituindo seu sistema de escolhas.[7]
Outros referenciais históricos
A questão do livre arbítrio é um tema que sempre teve seu espaço na teologia, fosse na antiguidade clássica, na era patrológica ou na contemporaneidade. Normalmente no embate predestinação x livre-arbítrio, o nome mais lembrado é o do eminente teólogo supracitado Agostinho, cuja notoriedade contra a controvérsia de Pelágio é consabida, entretanto, outros nomes também são dignos de consideração.
Justino Mártir (100-165) dizia que, embora não tenhamos tido escolha alguma no nascimento, em virtude dos poderes racionais que Deus nos deu, podemos escolher viver ou não de modo aceitável a Ele, não havendo desculpas quando agimos erroneamente. Ele dizia, ainda, baseado na pré-ciência divina que, Deus não predetermina as ações dos homens, mas prevê como irão agir por sua própria vontade, podendo inclusive, anunciar antecipadamente esses atos.[8] Concordavam com a livre escolha do homem os apologistas Atenágoras (133-190), Teófilo (?-186) e Taciano (120-180).
Vale a pena comentar a opinião de Tertuliano (160-220). Ele cria que o homem é como um ramo cortado do tronco original de Adão e plantado como uma árvore independente. Sendo assim, o homem herdou através da transgressão de Adão a tendência ao pecado. Como resultado do pecado de Adão, carregamos mácula e impureza. Apesar disso, o homem detém livre-arbítrio e é responsável por seus próprios atos.[9]
Muitas controvérsias em torno do livre-arbítrio se deram por equívocos exegéticos. Clemente de Alexandria (150-215), negava o pecado original baseado, por exemplo, em Jó 1.21. Segundo ele, a declaração de que Jó havia saído nu do ventre de sua mãe, deixava implícito que as crianças entram no mundo sem pecado. Essa má interpretação e ênfase exagerada no livre-arbítrio, levava-o a professar que “Deus deseja que sejamos salvos por nossos próprios esforços”.[10]
Outros esforços na defesa do livre-arbítrio também se deram nas disputas contra os maniqueístas. Estes questionavam a benevolência de Deus e lhe outorgavam a autoria do pecado. Se o homem herda de Adão a culpa e o pecado, não possuímos poder de escolha. Logo, raciocinavam eles, Deus é o autor do mal. Contra esses argumentos, levantaram-se homens como Cirilo de Jeusalém (313-386), Gregório de Nissa (330-395), Gregório de Nazianzo (329-389) e João Crisóstomo (347-407). Infelizmente, eles acabaram negando o pecado original afirmando que crianças recém-nascidas estão isentas de pecado, embora cressem que a raça humana foi afetada pelo pecado de Adão.[11]
(...)
Leia mais em: COUTO, Vinicius. Introdução à Teologia Armínio-Wesleyana. Reflexão, 2014.
Notas
[1] MCGIFFERT, Arhur Cushman. A History of Christian Thought, Volume 2. Charles Scribner's Sons, 1953, p. 125.
[3] KELLY, J. N. D. Patrística: Origem e desenvolvimento das doutrinas centrais da fé cristã. Vida Nova, 1994, p. 270.
[4] AGOSTINHO, Aurelio. De civitate Dei 14.11.
[5] AGOSTINHO, Aurelio. Enarrationes in Psalmos 89.4.
[6] AGOSTINHO, Aurelio. De gratia Christi et Peccatum Originale 1.25.
[7] AGOSTINHO, Aurelio. De gratia et libero arbitrio liber 31; De Spiritu et Littera 52.
[8] KELLY, J. N. D. Op. Cit., p. 125.
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