domingo, 12 de novembro de 2017

A obra de Cristo no Calvário: um breve estudo sobre as principais teorias expiatórias

Este é um estudo sobre a natureza e a abrangência da expiação de Cristo. Não se trata de um artigo científico, mas um breve texto-base para uma lição de Escola Bíblica Dominical. Este assunto (a expiação de Cristo) é muito importante para a igreja e é um tema que já discutido desde que a igreja existe. Ao longo dos dois milênios de cristandade, muitas teorias foram discutidas. Algumas delas com certa coerência e outras perigosas. Algumas ortodoxas e outras completamente heterodoxas.
Por isso, este breve estudo tem importância dupla: em primeiro lugar alinha as posições que foram consideradas corretas e em segundo momento, alerta sobre outras posições que são espúrias. Deste modo, este estudo mostrará a natureza da expiação apresentando as principais teorias que discutiram sobre essa doutrina e se elas possuem alguma coerência com as Escrituras ou não.

1. Teoria do resgate pago a satanás
Esta é uma das mais antigas teorias sobre a expiação de Cristo. Provavelmente seu “inventor” tenha sido Orígenes. De acordo com essa teoria, o anjo caído tinha autoridade (legalidade) para governar e oprimir a humanidade em função do pecado de Adão e da solidariedade da raça. Deste modo, foi necessário que Jesus Cristo viesse ao mundo para que pagasse pelo pecado da humanidade, pois isso dava legalidade ao diabo e a seus anjos. Por meio do sacrifício de Cristo, ele teria pago essa dívida a satanás.
Obviamente que essa teoria não tem respaldo bíblico, visto que Cristo disse a Deus que estava pago: “Então Jesus, depois de ter tomado o vinagre, disse: está consumado. E, inclinando a cabeça, entregou o espírito” (Jo 19.30). A expressão “está consumado” nesse versículo é tetelestai em grego, cujo significado também pode ser “está pago”. De acordo com a parábola que conhecemos como a do “credor incompassivo” (Mt 18.21-35), bem como a oração do “Pai nosso” (Mt 6.9-14)  nossas dívidas são devidas a Deus e não ao diabo.
Além disso, o Apóstolo Paulo disse que “havendo riscado o escrito de dívida que havia contra nós nas suas ordenanças, o qual nos era contrário, [Jesus] removeu-o do meio de nós, cravando-o na cruz; e, tendo despojado os principados e potestades, os exibiu publicamente e deles triunfou na mesma cruz” (Cl 2.14,15). Não faz sentido alguém “despojar”, “exibir” e “triunfar” pagando uma dívida. Pagar a dívida a satanás colocaria Jesus numa posição inferior ao diabo.

2. Teoria Mística
Esta teoria teve com principal defensor, um dos principais teólogos liberais, o alemão Friedereich Schleiermacher. De acordo com essa ideia, Jesus teria encarnado como um ser humano completo em todos os sentidos, inclusive no que diz respeito à predisposição imoral para o pecado, ou seja, o que chamamos de “pecado original”. De acordo com a teoria mística, Jesus venceu as tentações porque foi ajudado pelo Espírito Santo e extirpou a depravação humana na cruz, quando reuniu esta natureza humana a Deus. Em suma, a natureza divina penetrou a natureza humana na cruz, elevando-a ao status divina. O ser humano, portanto, pode ser influenciado de maneira mística pelo conhecimento desta obra de Jesus e se tornar alguém melhor.
Essa teoria está errada por pelo menos 3 razões: primeiro porque considera Jesus como nascido debaixo do efeito do pecado de Adão e possuidor do pecado original (Mt 1.20; Lc 1.35; Mc 2.5,6; Hb 4.15); segundo porque acaba distorcendo a perfeição da união hipostática; terceiro porque considera a mudança no ser humano por meio de uma influência cognitiva, ao invés de uma ação regeneradora do Espírito Santo.

3. Teoria do Exemplo
Foi uma teoria defendida pela grande maioria dos teólogos liberais, mas teve sua origem na época dos socinianos (seguidores do Fausto Socino, um polonês falecido em 1604, o qual acreditava que Jesus era apenas um homem comum, sem qualquer divindade). Atualmente, alguns expoentes de movimentos teológicos sociais (Teologia da Libertação e Teologia da Missão Integral) também seguem alguma ideia modificada dessa teoria.
Uma vez que Jesus era apenas um homem comum, sua morte não teve nenhum impacto sobre a salvação eterna e nem mesmo sobre o pecado. Sua morte é apenas simbólica e inspira as pessoas por seu exemplo de obediência e de desejo de ver uma sociedade melhor. Nesta teoria, o mais importante é a ética, meio pelo qual a sociedade (que não tem nenhuma inclinação ao pecado) pode ser melhor.
Paulo alertou aos colossenses para que eles tivessem cuidado: “...que ninguém vos faça presa sua, por meio de filosofias e vãs sutilezas, segundo a tradição dos homens, segundo os rudimentos do mundo, e não segundo Cristo; porque nele habita corporalmente toda a plenitude da divindade” (Cl 2.8,9). O mais importante nesta frase, entretanto, é que Jesus é afirmado como Deus, algo negado pelos socinianos e pelos liberais.
Além disso, Jesus não foi mero ativista social. Ele veio para redimir o ser humano do maior mal que o afligiu, a saber, o pecado: “Deus enviou o seu Filho ao mundo, não para que julgasse o mundo, mas para que o mundo fosse salvo por ele” (Jo 3.17). Esta teoria subtrai de Jesus sua divindade e faz releituras perigosas de outras doutrinas essenciais do cristianismo, como o pecado e a salvação.

4. Teoria adventista
Os adventistas do sétimo dia defendem a ideia de que no dia 22 de Outubro de 1844 Jesus teria entrado num santuário celeste para terminar o trabalho de expiação iniciado no Calvário. Tudo começou quando Guilherme Miller, um pregador Batista, começou a pregar sobre a vinda de Jesus datando-a para a data supracitada, calculando-a com base nas 2300 tardes e manhãs de Daniel (Dn 8.14). O não cumprimento desse cálculo culminou, no ano seguinte (1845), na expulsão de Miller e de seus seguidores, bem como na organização de um grupo que reunia os Crentes do Segundo Advento.
Ellen G. White alegou ter tido uma visão em 1845 de Jesus entrando num santuário (o santíssimo lugar). De acordo com ela (Spiritual gifts, p. 162), Jesus entrou nesse lugar “em 1844, para fazer uma  expiação  final  para  todos que pudessem ser beneficiados por Sua mediação, e para purificar o santuário.” Ela, portanto, interpretou que a data agendada por Miller se cumpriu com Jesus voltando de maneira invisível e entrando no santuário para completar a obra vicária e deu o nome de “juízo investigativo” a esta doutrina.
Obviamente que tal ensino não é menos pior do que a teoria do exemplo e constitui numa heresia grotesca, pois posiciona o sacrifício de Cristo como algo incompleto. Além disso, tal pensamento é baseado numa “revelação” extra-bíblica obtida por meio de uma experiência pessoal, cujas ideias contradizem aquilo que as Escrituras revelam sobre a natureza da expiação de Cristo.
O autor da epístola aos hebreus declarou que Jesus, “havendo ele mesmo feito a purificação dos pecados, assentou-se à direita da Majestade nas alturas” (Hb 1.3). Ele ainda declara que “por seu próprio sangue, [Jesus] entrou uma vez por todas no santo lugar, havendo obtido uma eterna redenção” (Hb 9.12). Sem contar que, o evangelista conta sobre algumas aparições do Jesus ressurreto, o qual “depois de lhes ter falado, foi recebido no céu, e assentou-se à direita de Deus” (Mc 16.19).
O autor da carta aos hebreus também contrastou os múltiplos sacrifícios oferecidos pelos sacerdotes com o único e suficiente sacrifício de Jesus. De acordo o autor, sua próxima aparição não é para entrar num santuário, mas para se revelar aos crentes que aguardam sua vinda:
“Pois Cristo não entrou num santuário feito por mãos, figura do verdadeiro, mas no próprio céu, para agora comparecer por nós perante a face de Deus; nem também para se oferecer muitas vezes, como o sumo sacerdote de ano em ano entra no santo lugar com sangue alheio; doutra forma, necessário lhe fora padecer muitas vezes desde a fundação do mundo; mas agora, na consumação dos séculos, uma vez por todas se manifestou, para aniquilar o pecado pelo sacrifício de si mesmo. E, como aos homens está ordenado morrerem uma só vez, vindo depois o juízo, assim também Cristo, oferecendo-se uma só vez para levar os pecados de muitos, aparecerá segunda vez, sem pecado, aos que o esperam para salvação” (Hb 9.24-28)

5. Teoria da identificação
Essa não é uma nomenclatura utilizada ainda nas teologias sistemáticas, mas uma proposta minha num artigo intitulado “Cristo morreu espiritualmente?” Trata-se da visão popular entre a maioria dos neopentecostais. Nesta perspectiva, Jesus não teria, semelhantemente à visão dos adventistas, concluído sua obra vicária no calvário. A diferença da visão neopentecostal para a adventista, entretanto, está no tempo. Enquanto para estes Jesus só completou Sua obra em 1844, para aqueles, Jesus completou quando foi ao inferno, sendo castigado pelos pecados da humanidade e se identificando com os seres humanos nesse castigo.
Nessa teoria, Jesus teria descido ao inferno num status de morto espiritualmente para se identificar com o ser humano e sofrer as punições do pecado. Jesus ainda teria tomado algum molho de chaves das mãos do diabo e pregado aos espíritos em prisão uma mensagem salvífica, pois alguns neopentecostais advogam a ideia da “perseverança divina”, isto é, de que Jesus teria deixado uma mensagem para as pessoas que nunca ouviram o Evangelho tivessem uma chance de salvação.
No que diz respeito completude e suficiência do sacrifício de Cristo no calvário, podemos citar sua frase de João 19.30: “Está consumado”. Como já adiantamos na teoria do resgate pago a satanás, a expressão “está consumado” pode significar “está pago”. O tempo verbal dessa passagem (tempo perfeito e modo indicativo) mostra que sua obra está realizada, mas que seus efeitos falam até hoje. A título de comparação podemos citar as expressões de Jesus em Mateus 4.4,6,7: “Está escrito”, que em grego é gegraphtai. A Palavra de Deus como Escritura não continua a ser escrita, já foi terminada, mas seus efeitos continuam até hoje.
Além disso, vale comentar que não existe nenhum versículo bíblico contando que Jesus tomou alguma chave das mãos do diabo. Pelo contrário, há um versículo que afirma sua soberania e supremacia como alguém que possui as chaves: “Não temas; eu sou o primeiro e o último, e o que vivo; fui morto, mas eis aqui estou vivo pelos séculos dos séculos; e tenho as chaves da morte e do hades” (Ap 1.17,18).
Finalmente, segunda chance após a morte é incompatível com o ensino bíblico, pois “aos homens está ordenado morrerem uma só vez, vindo depois o juízo” (Hb 9.27). Deste modo, a ideia de “perseverança divina” é completamente equivocada e ilude as pessoas com uma expectativa irreal.

6. Teoria Governamental
Esta teoria foi defendida pela primeira vez por um jurista holandês chamado Hugo Grotius (1583-1645) e posteriormente por vários remonstrantes e metodistas. Ela acerta quando declara que a Lei de Deus exige justiça, pois no Governo de Deus, foi estabelecido que “a alma que pecar, essa morrerá” (Ez 18.20). O descumprimento da justiça de Deus exige que Ele execute Sua justiça sobre os injustos.
Como Deus poderia ser clemente para com os pecadores uma vez que impôs que o salário do pecado é a morte (Rm 6.23)? Foi para isso que Jesus se manifestou, para cumprir a Lei e cumprir a justiça exigida por Deus. O erro, entretanto, dessa teoria é que Cristo não morreu no lugar dos pecadores, mas em favor dos pecadores, pois Sua morte é o exemplo máximo e mais profundo da justiça de Deus sendo aplicada em Jesus.
O erro, portanto, reside no fato de que Jesus não é o substituto dos seres humanos, mas o exemplo de justiça cumprida e de justiça aplicada. O problema disso é minimizar os pecados dos seres humanos e de colocar o exemplo de Jesus como algo um tipo de influência moral. Embora o exemplo de Cristo nos motive a viver em santidade, Seu sacrifício substituiu nossa incapacidade de perfeccionismo moral: “Miserável homem que eu sou! quem me livrará do corpo desta morte? Graças a Deus, por Jesus Cristo nosso Senhor!” (Rm 7.24,25).

7. Teoria da Substituição Penal
Esta é a posição dos reformadores. A teoria governamental é semelhante no que diz respeito à exigência da justiça de Deus, mas difere no modo como Jesus morreu. Na governamental, Cristo morreu em favor dos seres humanos e na substituição penal, Ele morreu não apenas em favor, mas no lugar dos pecadores. Substituição penal, como o próprio nome sugere, significa dizer que Jesus substituiu os pecadores na pena que lhes é devida.
Alguns textos que mostram essa realidade são: “​Aquele que não conheceu pecado, ele o fez pecado por nós; para que, nele, fôssemos feitos justiça de Deus” (2 Co 5.21). “..o Filho do Homem, que não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por muitos” (Mt 20.28). “Mas Deus dá prova do seu amor para conosco, em que, quando éramos ainda pecadores, Cristo morreu por nós. Logo muito mais, sendo agora justificados pelo seu sangue, seremos por ele salvos da ira” (Rm 5.8,9)

Considerações finais
Como pôde ser visto, durante a história da Igreja, surgiram muitas ideias a respeito do ato sacrificial de Jesus Cristo. Alguns entenderam que sua morte era apenas um exemplo de alguém que lutava por um ideal, um martírio consequente de uma ideologia. Outros que Jesus teria pago a dívida humana ao adversário de Deus, satanás. Outros que a morte de Jesus seria parte do pagamento a Deus, com alguns entendendo que Jesus pagou o restante no inferno e outros que Ele terminou de pagar num juízo investigativo.
Embora tenhamos visto que existe uma grande quantidade de teorias erradas e de caráter heterodoxo, outros ensinaram acertadamente que Cristo substituiu o ser humano no Calvário de maneira suficiente, pagando pelos pecados a Deus. Além das Escrituras apontarem para a substituição penal na natureza da expiação, existe outra discussão sobre esse importante obra de Cristo: sua abrangência. De modo geral, os calvinistas creem que a abrangência da expiação se deu apenas por aqueles que foram eleitos na eternidade passada. Em contrapartida, os arminianos creem que Cristo morreu por toda a raça humana. Porém, isso é assunto para outra aula.

Nenhum comentário:

Postar um comentário