segunda-feira, 20 de outubro de 2014

Devemos ou não julgar?*

O significado de julgar

Sempre ouvimos expressões como “não toqueis nos meus ungidos”, “não julgueis para não serdes julgados”, ou frases afins, sendo utilizadas com o intuito de contrariar a prática do julgamento doutrinário.
Antes de mais nada, faz-se importante conceituarmos a palavra “julgar”, pois somente assim poderemos fazer o bom e correto uso dessa ordenança bíblica.
De acordo com a International Standard Bible Encyclopedia, as palavras "discernir" e "discernimento" ocorrem em três formas no Novo Testamento (dokimazo, anakríno e diakríno).[1] Duas delas têm raiz no verbo krino, cujo significado é "peneirar", "distinguir", "selecionar", "separar", “decidir” ou “julgar”.
De acordo com Vine, dokimazo significa distinguir, por à prova, provar, examinar, julgar com a expectativa de poder aprovar. É encontrada em 1 Ts 5.21 na ordenança de Paulo para avaliarmos todas as coisas, em Lc 12.56 no questionamento de Jesus aos fariseus sobre o discernimento do tempo e em Gl 6.4 no sentido de pôr à prova nossas próprias obras.
O verbo anakríno significa distinguir, examinar, esquadrinhar, interrogar, separar com o fim de investigar em um exame exaustivo. Esta palavra é usada por Lucas em 23.14, citando uma fala de Pilatos: “Apresentastes-me este homem como pervertedor do povo; e eis que, interrogando-o diante de vós, não achei nele nenhuma culpa, das de que o acusais”. Ela também ocorre em 1 Co 2.14 e 1 Co 4.3.
 Diakríno significa distinção, discriminação clara, discernimento e juízo. Aparece em 1 Co 12.10 na relação dos dons espirituais, em Hb 5.14 se referindo à característica de um cristão maduro na fé e em Rm 14.1 dizendo para que não julguemos (condenemos) os fracos na fé.
Vine acrescenta, ainda, outra palavra, o adjetivo kritikós, cujo sentido é relativo a juízo, discernimento.[2] Strong também comenta que esta palavra faz alusão a julgamento, aptidão ou habilidade para julgar, discernir.[3] Esta é a palavra empregada no texto de Hebreus 4:12: "Porque a Palavra de Deus é viva e eficaz, (...) e apta para discernir os pensamentos e propósitos do coração".
Como podemos verificar, nosso adjetivo “crítico” deriva-se da mesma raiz. Normalmente olhamos para essa palavra em seu sentido pejorativo e assimilamos a pessoas que sempre reclamam ou que constantemente observam os defeitos e falhas.
Entretanto, “crítico” vem de “critério”. Um crítico de cinema, por exemplo, precisa realizar sua análise baseado em critérios pré-estabelecidos. Somente desta forma, ele poderá realizar uma boa avaliação e chegar a um veredicto consistente acerca dos prós e contras da obra cinematográfica.
Outro exemplo simples pode ser usado na figura de uma dona de casa que vai à feira comprar tomates. Ela sabe que não deve comprar qualquer um que esteja à sua frente. Possui critérios de escolha, de seletividade. Os que estão muito maduros ficam no estoque do vendedor, pois correm o risco de estragarem antes de serem aproveitados por esta mulher. Em contrapartida, os que estão num estado intermediário, isto é, nem tão verde e nem tão maduros serão mais provavelmente os escolhidos na compra.
Não é partindo do mesmo pressuposto que se escolhe o feijão que será consumido? Destarte, o ensino paulino é que julguemos todas as coisas, retendo o que é bom (1 Ts 5.21).

O julgamento hipócrita

Normalmente são usadas duas passagens bíblicas para contestar o trabalho apologista das Escrituras em contraste com um ensino heterodoxo: Mt 7.1-5 e 1 Cr 16.22.
Analisaremos em separado os dois assuntos em seções individuais. Nesta primeira comentaremos sobre o que Jesus proferiu em um dos trechos de Seu conhecido Sermão da Montanha (Mt 5-7).
Mateus 7.1-5, portanto, diz o seguinte: “Não julgueis, para que não sejais julgados. Porque com o juízo com que julgais, sereis julgados; e com a medida com que medis vos medirão a vós. E por que vês o argueiro no olho do teu irmão, e não reparas na trave que está no teu olho? Ou como dirás a teu irmão: Deixa-me tirar o argueiro do teu olho, quando tens a trave no teu? Hipócrita! tira primeiro a trave do teu olho; e então verás bem para tirar o argueiro do olho do teu irmão.”
Tal passagem é constantemente utilizada na tentativa de encerrar uma discussão (no bom sentido da palavra) doutrinária. Quem se utiliza do texto supracitado entende que os apologistas estão julgando personalidades e/ou lideranças carismáticas.[4]
O texto é bem claro nos dizeres de Jesus. Não devemos julgar as pessoas como se fôssemos mais especiais, com ar de superioridade, falsa santidade, arrogância, vaidade, orgulho ou vanglória.
Muitas pessoas olham para terceiros e esquecem de averiguar seus próprios erros. Os fariseus eram duramente criticados por tal postura hipócrita.
Analisando Mt 7.1, Kuiper diz que “é claro que Jesus aqui proíbe o julgamento. A questão, contudo, é se Jesus proíbe todo julgamento, ou somente certo tipo de julgamento.”[5]
Para obtermos a resposta para essa questão, devemos observar uma das regras de hermenêutica: olhar o texto dentro de seu contexto. Se assim o fizermos, poderemos constatar dois pontos.
Primeiro ponto: Jesus não está proibindo todo julgamento, mas o julgamento hipócrita. Não podemos ignorar nossos pecados e condenar deliberadamente outras pessoas.
Jesus contou uma parábola em Lc 18.9-14 referindo-se a tal prática anticristã. Dirigiam-se para oração um fariseu (ícone religioso de seus dias) e um publicano (ícone dos pecadores). O primeiro agradecia a Deus por não ser como aquele cobrador de impostos e tampouco como outras classes de pecadores, a saber, ladrões, injustos e adúlteros. Não obstante, ele era um dizimista fiel.
Num olhar aparente e externo, o religioso era um modelo a ser seguido. Entretanto, o outro homem reconheceu seu lugar de pecador. Neste estado, ele confessava sua necessidade da misericórdia e graça divina, bem como sua posição de criatura diante do Soberano Criador. Ele não se auto justificava com uma falsa piedade, antes, reconhecia ser indigno de um simples olhar para o céu.
O que aquele fariseu não percebeu era que, a confiança depositada em suas próprias obras havia se tornado como uma trave que cegava seus olhos, fazendo dele um “crente” nominal, ao passo que o publicano, realmente pecador, reconhecia esse fato, professando dependência em Deus e não em si mesmo. Essa sinceridade lhe fazia ter um cisco nos olhos se comparado ao fariseu, que se achava “santarrão”, mas na verdade era um iníquo enrustido.
Segundo ponto: considerando que Jesus estava no meio de um sermão o qual tratou de diversos assuntos, Ele ainda comentou sobre a necessidade de “julgarmos” os falsos profetas.
Embora “julgar” não seja a palavra usada no contexto da passagem de Mt 7.15-23, podemos raciocinar desta forma. Nos versos que precedem este trecho, Jesus alerta sobre o perigo de se seguir um caminho largo, pois seu final é a perdição eterna.
Na sequencia, Cristo alerta sobre a prudência em nos guardarmos dos falsos profetas. Não seria uma insinuação de que estes conduzem seus seguidores por este caminho largo e espaçoso? De qualquer forma, ficou o alerta. Devemos nos precaver e o meio pelo qual os identificaremos se dá por meio de um critério analítico de seus frutos: “Pelos seus frutos os conhecereis” (Mt 7.16a). Fica claro que precisamos aperfeiçoar nosso senso kritikós, afinal, os tomates “proféticos” estão fresquinhos ou estragados?

Não toqueis nos meus ungidos

A outra expressão utilizada com maior frequência é “não toqueis nos meus ungidos”. Ela está baseada nas passagens de 1 Cr 16.22 e Sl 105.15.
Há, ainda, o episódio de Davi quando se escondeu numa caverna. Naquela ocasião, ele estava sendo perseguido por Saul há um tempo considerável e optou por fugir do rei e de seus homens. No meio dessa fuga, Davi se escondeu aguardando que Saul se fosse com seus homens.
Para sua surpresa, o rei precisava aliviar o ventre e foi justamente ao esconderijo em Davi se emcontrava. Enquanto Saul fazia suas necessidades, teve um pedaço da orla de seu manto cortado sem que percebesse.
Os homens que estavam com Davi até o incentivaram a se aproveitar da oportunidade, mas após obter um pedaço do manto de Saul, o jovem foragido acabou ficando com remorso e declarou a seus homens: “O Senhor me guarde de que eu faça tal coisa ao meu senhor, ao ungido do Senhor, que eu estenda a minha mão contra ele, pois é o ungido do Senhor” (1 Sm 24.6).
Dessa forma, alguns evangélicos entendem que este é um princípio bíblico no tocante aos cuidados que devemos ter com os pastores e líderes de nossas igrejas.
Contradizer, discordar, questionar ou criticar os pastores, apóstolos, bispos, patriarcas ou qualquer outra categoria de “ungidos” de Deus seria um delito espiritual. É como se a unção de Deus fosse um ato de imunidade para tais líderes e o não cumprimento desse dever implicaria em consequências desastrosas para os transgressores.
Este conceito tomou corpo no meio evangélico e algumas pessoas preferem omitir suas opiniões com medo de represálias ou até mesmo da ira divina caso questione a postura pastoral.
Obviamente que não estamos aqui incentivando o desrespeito e a insubmissão às autoridades eclesiásticas. De modo nenhum! Antes, queremos demonstrar que tais conceitos são biblicamente deturpados e não podem servir para acobertar falhas morais e teológicas de determinadas lideranças evangélicas.
No caso do “ungido do Senhor” podemos ver algumas inverdades que vêm sendo propagadas.
Primeira inverdade: os ungidos são os líderes eclesiásticos. Isso se dá porque não há nenhuma ligação entre o cargo do rei com os ofícios eclesiásticos.
Como explica Nicodemus, a expressão “ungido do Senhor” é usada na Bíblia em referência aos reis de Israel que “eram oficialmente escolhidos e designados por Deus para ocupar o cargo mediante a unção feita por um juiz ou profeta. Na ocasião era derramado óleo sobre sua cabeça para separá-lo para o cargo”.[6]
Embora algumas denominações até utilizem de óleo para ungir seus pastores ou bispos em consagrações ou até mesmo nas cerimônias de ordenação, a expressão veterotestamentária “ungido”, referindo-se a líderes evangélicos, não encontra paralelo no Novo Testamento.
Os Apóstolos não tiveram nenhuma cerimônia de unção com Jesus, os diáconos tampouco com os Apóstolos, Paulo não descreve esse ritual para o comissionamento dos obreiros, enfim, sendo assim não podemos traçar tal paralelo.
Em contrapartida, os crentes em geral e não apenas líderes, são sim ungidos de Deus, selados com o Espírito Santo, o penhor de nossa salvação (2 Co 1.21,22; 1 Jo 2.20).
Segunda inverdade: não toqueis se refere a discordar, questionar, reprender, etc. Como já foi declarado, a proposta desse capítulo não é fomentar um desrespeito pelas autoridades eclesiásticas. Afinal, a Bíblia nos ensina: “Obedecei a vossos guias, sendo-lhes submissos; porque velam por vossas almas como quem há de prestar contas delas” (Hb 13.17).
Podemos citar várias outras passagens que incentivam de forma saudável a honra aos nossos líderes (Mt 10.40; Rm 15.30; 1 Co 4.1; 16.16; 2 Co 1.11; Gl 4.14; Ef 6.19; Fp 2.29; 3.17; 1 Ts 5.13; 1 Tm 4.12; 5.17; Hb 13.7).
O que está em questão é a proposta enganadora de sujeitar e manipular os fiéis sob um falso discurso de submissão.
Se voltarmos ao episódio de Davi na caverna, perceberemos que ele não tocou no “ungido do Senhor”, isto é, não o feriu, machucou, espancou ou matou. Todavia, é nítido que Davi repreendeu Saul por sua injustiça e falta com a verdade, além de colocar a causa que o afligia nas mãos do único que pode intervir com perfeita justiça (cf 1 Sm 24.8-12).
Romeiro explica essa situação dizendo que as passagens referentes à expressão em análise “não se referem a um questionamento ético ou doutrinário do líder, mas a algum perigo para a integridade física de um ungido de Deus”[7]
Podemos ver um caso semelhante ao de Davi no episódio de Abraão em Gerar. Nesta ocasião, o patriarca contou a meia verdade de que Sara era sua irmã, temendo a Abimeleque. Este até tomou Sara, mas foi avisado em sonho que seria punido caso tomasse-a por esposa.
Apesar de Deus ter proibido Abimeleque de tocar no profeta e ungido do Senhor, ou seja, de causar-lhe algum dano físico, ele não hesitou em repreender Abraão por ter-lhe mentido: “Que é que nos fizeste? E em que pequei contra ti, para trazeres sobre mim o sobre o meu reino tamanho pecado? Tu me fizeste o que não se deve fazer (...) Com que intenção fizeste isto?” (Gn 20.9,10).
Recorrendo à Igreja Primitiva, vamos perceber que “nunca os apóstolos de Jesus Cristo apelaram para a ‘imunidade da unção’ quando foram acusados, perseguidos e vilipendiados pelos próprios crentes”.[8]

O julgamento bíblico

Afinal de contas, devemos ou não julgar? O que a bíblia diz, portanto, sobre esse assunto? Veremos doravante alguns conceitos firmados pela Palavra de Deus.
Conforme já vimos, somos exortados a exercer o nosso discernimento. Paulo disse que devemos julgar todas as coisas e reter o que é bom (1 Ts 5.21). Este julgar não diz respeito a conjecturar ou especular a salvação de terceiros. Vale ressaltar outro ponto importante. Há uma enorme diferença entre julgar e condenar. Talvez seja este o maior temor que algumas pessoas enfrentam ao se deparar com livros ou artigos de apologética cristã.
Kuiper explica que, “julgar e condenar são duas coisas distintas, relacionadas, mas não idênticas”. Em seguida, ele exemplifica essa afirmação através do caso da mulher adúltera em Jo 8, mostrando que, “Jesus de fato julga esta mulher, mas não a condena. Ao dizer-lhe ‘vá e não peques mais’, Jesus indica que ela tinha pecado. Em si mesma, a acusação dos fariseus estava correta, e Jesus julgou o pecado como sendo pecado (...) Embora Jesus tenha julgado a mulher, ele não a condenou”.[9]
Como bem lembra Romeiro, quando Paulo chegou a Beréia, já possuía um currículo bem respeitado e até invejável. Ele havia estudado com um mestre renomado de sua época, Gamaliel, e desfruta­va da confiança das autoridades que lhe deram autorização para perseguir os cristãos, além de ter passado por uma conver­são fantástica.[10]
Apesar de tudo isso, os bereanos exerceram o juízo enquanto Paulo e Silas lhes anunciavam as boas novas. Lemos em Atos 17.11 que eles “receberam a palavra com toda avidez, examinando diariamente as Escrituras para ver se estas coisas eram assim”.
É como se o Apóstolo dos gentios fizesse uma citação messiânica de Isaías, por exemplo, e os ouvintes de Beréia procurassem na Escritura Sagrada, a fim de confrontar com o ensino paulino.
Encontramos, ainda, as advertências do Apóstolo João sobre o cuidado com heresias propagadas por pessoas que “não eram dos nossos; porque, se fossem dos nossos, teriam permanecido conosco; mas todos eles saíram para que se manifestasse que não são dos nossos” (1 Jo 2.19).
Sendo assim, João afirma à Igreja que não desse crédito a qualquer pregador, “mas provai se os espíritos vêm de Deus; porque muitos falsos profetas têm saído pelo mundo” (1 Jo 4.1).
Estes falsos profetas , gnósticos como chamamos hoje, estavam ensinando heresias cristológicas, negando a natureza humana de Cristo. Seus ensinos eram místicos e misteriosos e eles alegavam uma revelação especial para suas doutrinas.
Como diferenciar, então, um pregador cristão de um gnóstico? A Igreja deveria julgar o ensino do mesmo: “Nisto conheceis o Espírito de Deus: todo espírito que confessa que Jesus Cristo veio em carne é de Deus; e todo espírito que não confessa a Jesus não é de Deus; mas é o espírito do anticristo, a respeito do qual tendes ouvido que havia de vir; e agora já está no mundo.” (1 Jo 4.2,3).
Outra controvérsia que a Igreja enfrentou em seus primeiros anos foi a dos judaizantes. Alguns fariseus que passaram a professar a fé cristã, não se contentaram com a simplicidade do Evangelho e não quiseram abrir mão de alguns aspectos do judaísmo farisaico e fizeram de tudo para misturar o Evangelho puro e simples com a Lei de Moisés.
Essa controvérsia trouxe sérios aborrecimentos ao Apóstolo Paulo, o qual exortou irmãos que estavam deixando a doutrina de Cristo para ir após outro evangelho em sua carta aos gálatas. Uma mensagem diferente da mensagem de Cristo deveria ser descartada, ainda que fosse pregada por anjos ou qualquer apóstolo (Gl 1.8).
As principais religiões judaicas do primeiro século da era cristã eram os fariseus, saduceus, zelotes e essênios. Cada um desses grupos tinham costumes que lhes eram próprios e com a proliferação do cristianismo para os gentios, houve um grande choque cultural entre estes e os judeus, os quais quiseram impor a continuação da circuncisão.
Esta discrepância doutrinária trouxe uma discussão acalorada entre Paulo, Silas e os fariseus recém-convertidos. Tal controvérsia só pôde ser apaziguada em uma reunião conciliatória em Jerusalém por volta do ano 51. d.C. (cf At 15).
Esse problema judaizante ainda teve outras repercussões. Paulo chegou a ter uma leve desavença com Pedro por conta de um posicionamento mais explícito e chegou até mesmo a repreendê-lo (Gl 2.11-21).
Houve julgamento (peneiramento, distinção, seleção, separação e decisão) neste encontro de Paulo em Antioquia. Não dava para seguir dois evangelhos, um da circuncisão e outro da graça.
Mas isso não é uma falta de amor ou um ato faccioso? De forma alguma, o próprio Paulo deixou claro que, o amor não se alegra com a injustiça e sim com a verdade (1 Co 13.6). Seria muito fácil defendermos um falso amor baseado numa falsa tolerância. Porém, isso não seria o amor bíblico, mas um ecumenismo de “teologias” variadas.
Apesar de todas essas bases bíblicas, muitos líderes não têm abertura para uma discussão teológica. Preferem permanecer no erro ao invés de dar o braço a torcer humildemente. Mesmo sabendo disso, Paulo lutou pela sanidade do evangelho. Aos que não aceitavam suas ideias, ele perguntava: “Tornei-me acaso vosso inimigo, porque vos disse a verdade?” (Gl 4.16).

O julgamento na História da Igreja

A Bíblia trata do caráter apologético das doutrinas centrais da fé cristã em praticamente todos os seus livros do Novo Testamento. Desde a ressurreição de Cristo, muitas heresias se introduziram no meio da Igreja. Embora os Apóstolos, os pais apostólicos, os pais apologistas e os pais polemistas tenham lutado pela fé que uma vez nos foi dada, alguns resquícios dessas falsas doutrinas permaneceram e/ou evoluíram para os séculos posteriores.
Na presente era da Igreja, encontramos esses resíduos primitivos em conceitos teológicos profundamente equivocados. Os atributos de Deus são confundidos em muitas seitas pseudo-cristãs. A natureza de Cristo ainda sofre má interpretação em relação a Sua divindade e humanidade. O Espírito Santo é questionado e confundido em alguns grupos religiosos. A doutrina da graça ainda é pervertida. O cânon das Escrituras continua a ser atacado por alguns supostos cristãos. Certos homens insistem em recosturar o véu. A simonia permanece desgraçando a autenticidade do cristianismo... E por aí vai.
A maioria das heresias ocorre em virtude da ênfase exageradamente mística que alguns dão à religiosidade.[11] É certo que Deus é um ser pessoal e que se relaciona com seu povo. Todavia, devemos buscar explicações para nossas experiências à luz da Palavra de Deus e não vice-versa.
Berkhof diz que, esta “posição deve ser sustentada em oposição a todas as classes de místicos”, pois eles alegam revelações especiais, bem como um conhecimento metafísico não mediado pela Palavra de Deus, o que pode nos levar “a um oceano de ilimitado subjetivismo”.[12]
Na história da Igreja, os primeiros cristãos precisaram seguir a orientação de Judas por inúmeras vezes: “senti a necessidade de vos escrever, exortando-vos a pelejar pela fé que de uma vez para sempre foi entregue aos santos” (Jd 3).
Os efésios são elogiados por Jesus por não se conformem com um grupo chamado em Apocalipse de Nicolaítas (Ap 2.6,15).
A interpretação dessa passagem é analisada em pelo menos três perspectivas: 1) eram seguidores de Nicolau, um dos sete que foram designados diáconos em At 6 e que acabou deixando a ortodoxia; 2) gnósticos que queriam se infiltrar na igreja e 3) pessoas que seguiam o ensinamento de falsos Apóstolos e de Balaão.[13]
Embora não haja consenso sobre a origem dos nicolaítas, sabemos que eles pregavam uma versão inovadoramente imoral do Cristianismo.
Era um evangelho sem exigências, liberal e sem proibições, no qual queriam gozar o melhor da igreja e o melhor do mundo. Eles incentivavam os crentes a comer comidas sacrificadas aos ídolos e diziam que o sexo antes e fora do casamento não era pecado, estimulando a imoralidade.[14]
Clemente de Alexandria disse que Nicolau (ele cria que fosse um dos sete diáconos) foi repreendido por se enciumar de sua mulher que era muito bonita. Respondendo a essa reprovação, ele disse que quem quisesse poderia tomá-la como esposa, ou seja, ter relações sexuais com ela. Clemente acrescenta, ainda, que Nicolau passou a ensinar que os apóstolos tinham permitido relações promíscuas e comunitárias com as mulheres.[15]
Eusébio de Cesaréia confirma a citação de Clemente em sua história eclesiástica. Entretanto, alega ter pesquisado sobre a vida de Nicolau e descobriu que, embora este tenha ensinado que “cada um deve ofender a própria carne”, ele mesmo não viveu com outra mulher a não ser sua esposa, manteve suas filhas em virgindade até idade avançada, bem como seu filho incorrupto. Eusébio entende que Nicolau tenha permitido sua mulher se relacionar com outros homens para suprimir sua paixão carnal e os prazeres que buscava com tamanho empenho.[16]
Infelizmente, alguns seguiram a prática nicolaíta e se entregaram às paixões sob a alegação de que a carne para nada se aproveita. Easton disse que “eles se pareciam com uma classe de cristãos professos, que procuravam introduzir na igreja uma falsa liberdade ou licenciosidade, desta forma abusando da doutrina da Graça ensinada por Paulo”.[17]
A Igreja precisou lidar com muitas heresias no decorrer de sua história. Paulo até declarou que, “até importa que haja entre vós heresias, para que os que são sinceros se manifestem entre vós” (1 Co 11.19 – ARC).
As heresias faziam separação dos verdadeiros crentes – que buscavam seu estilo de vida no uso da aplicação correta da sã doutrina – e dos falsos – que optavam por uma versão incongruente do evangelho.
Podemos ver exemplos da luta doutrinária da Igreja com os maniqueístas que davam ênfase num dualismo onde Deus e o diabo eram dotados de poder co-iguais, com o arianismo que negava a natureza divina de Cristo, com os monarquianistas dinâmicos (ou adocianistas) que diziam que Cristo tinha assumido a forma divina somente após o batismo, com os ebionitas que entendiam que Jesus fosse apenas humano; com os docetas que criam que Ele fosse apenas divino e que Seu sofrimento tinha sido apenas simbólico; com os eutiquianistas (monofisistas) que ensinavam uma natureza amalgamada da divindade e humanidade de Cristo; com os apolinarianistas que negavam a natureza humana completa de Jesus, alegando que o Logos substituiu a alma humana de Cristo; com os sabelianos (monarquianistas modalistas ou somente modalistas) que diziam ser Cristo o segundo modo das três sucessivas manifestações de Deus; com os patripassianistas, uma variante desta última, que ensinavam que o próprio Pai havia morrido na cruz (patripassianismo).
Embora dezenas de heresias tenham sido citadas aqui, muitas outras ainda ficaram faltando. Algumas por falta de espaço, outras por falta de pertinência temática. Contudo, que a Igreja continue utilizando o divino par de lentes que “coletando-nos na mente conhecimento de Deus de outra sorte confuso, dissipada a escuridão, mostra-nos em diáfana clareza o Deus verdadeiro”,[18] afinal, "A Bíblia, toda a Bíblia e nada mais do que a Bíblia, é a religião da igreja de Cristo."[19] Ela é efetivamente “absoluta ou obsoleta”.[20]

Conselhos práticos

Para finalizar esse capítulo gostaria de trazer alguns conselhos práticos para que os cristãos melhorem seus critérios e exerçam o discernimento bíblico.
Segundo Romeiro, é preciso tomarmos cuidado em pelo menos quatro circunstâncias: nas livrarias evangélicas, nas editoras evangélicas, na educação teológica e até mesmo ao escolher uma igreja.[21]
Não é porque uma livraria se diz evangélica que ela possui apenas materiais evangélicos. Algumas delas vendem produtos de outras religiões. Precisamos verificar criteriosamente do que se trata.
Recentemente, um amigo meu me emprestou um livro alegando ser muito bom. Segundo ele, era um ótimo material escatológico que ele havia comprado numa livraria evangélica em Juiz de Fora, Minas Gerais. Como ele disse que me traria o livro no dia seguinte, perguntei-lhe, curioso, qual era o autor e ele me respondeu que era Paiva Netto.
Fiquei assustado com a resposta, pois Netto é o atual presidente da LBV, um grupo espírita. O livro chama-se “Apocalipse sem medo” e é recheado de heresias. Não sei como o meu amigo conseguiu acha-lo bom!
Algumas dicas para se evitar leituras controvertidas, é tentar conhecer o autor, saber de que igreja ele é, qual a sua reputação e a afinidade teológica dele com sua denominação.
Outro cuidado se dá em relação à editora. Longe de querer generalizar, existem algumas que apoiam visivelmente materiais controversos e cujo forte é a publicação de livros de batalha espiritual, demonologia, etc.
Algumas denominações possuem editoras específicas, como é o caso das Assembléias de Deus com a CPAD e a Betel; a Igreja do Nazareno com a CPN; a Metodista Wesleyana com a CPIMW; a Batista com a Editora Batista Regular e a JUERP e a Presbiteriana com a Cultura Cristã.
Há, ainda, outras excelentes editoras que não foram citadas, como a Vida Nova, Hagnos e Fiel. De qualquer forma é preciso estar atento.
O cuidado na educação teológica também é muito importante. Muitas pessoas estão aderindo a cursos de teologia que não possuem nenhuma integridade.
A grande maioria de cursos teológicos no Brasil é sem o reconhecimento do MEC. Isso, todavia, não os desmerece, pois há o reconhecimento denominacional. Antes de fazer algum curso é importante verificar a que denominação o mesmo é ligado, qual a confissão de fé e se sua igreja o aprova.
Há muitos cursos prometendo formar um “teólogo” em alguns meses. Conheci, recentemente, um rapaz que se intitula Doutor em Divindade. Segundo ele, o título foi conseguido em três anos de estudo, sendo um para o bacharel em Teologia, mais um para o mestrado e mais um para o doutorado.
Cursos como esse, além de manchar a reputação dos verdadeiros teólogos, formam titulados superficiais e que estão muito aquém do que se espera deles. Infelizmente, há muitos irmãos sendo enganados.
Finalmente, fica o alerta para a escolha de uma igreja. Com isso, não estou sugerindo ao amado leitor que mude de denominação. No meu caso não houve oportunidades de mudar o sistema gedozista e optei em me desligar de meu primeiro ministério. Saí de lá amigavelmente e a escolha seguinte seria muito séria. Eu precisava ser criterioso antes de tomar a decisão de qual denominação me filiaria.
Romeiro dá algumas dicas nesse sentido: 1) compromisso em ensinar a Bíblia de forma séria e equilibrada; 2) preferência por igrejas filiadas ao invés de independentes; 3) declaração de fé consistente; 4) prestações de conta e uso responsável dos recursos e 5) denominação e liderança moralmente idôneas.[22]
Meu desejo é que esse livro sirva para mover o coração de líderes a uma mudança positiva, a uma volta ao cristianismo puro e simples. Ao invés de dissidências e separações, que haja humildade para consertar o que vem prejudicando o autêntico Evangelho.

Notas

*Trecho do livro “A Verdade Sobre o G-12”, de Vinicius Couto.
[1] BROMILEY, Geoffrey W. (Ed.). The International Standard Bible Encyclopedia. Grand Rapids, Michigan, 1979, vol.l, p. 947.
[2] VINE, W. E. Dicionário Exegético e Expositivo. CPAD. Rio de Janeiro, 2009, p. 568.
[3] STRONG, James. Nueva Concordancia Strong Exhaustiva. Editorial Caribe. Nashville, 2002, p. 605.
[4] Entenda-se carismático como uma pessoa que tem a atratividade de um público em geral. Não confundir com o movimento carismático.
[5] KUIPER, Doug. Julgar: o dever de todo cristão. Byron Center Protestant Reformed. Michigan, 1999,  p. 13.
[6] NICODEMUS, Augustus. Como entender a ordem para não tocar no ungido do Senhor?  Revista Defesa da Fé. Ano 13, n°104 - Julho/Agosto de 2013, p.64 .
[7] ROMEIRO, Paulo. Evangélicos em Crise. São Paulo: Mundo Cristão, 1999, p. 41.
[8] NICODEMUS, Augustus, Op. Cit., p. 65.
[9] KUIPER, Doug. Op. Cit., p. 14.
[10] ROMEIRO, Paulo. Op. Cit., p. 202.
[11] BREESE, Dave. Conheça as marcas das seitas. Fiel, 2001, pp.18-22
[12] BERKHOF, Louis. Teologia Sistemática. Cultura Cristã, 2012, p.614.
[13] KISTEMAKER, Simon. Comentário do Novo Testamento: Apocalipse. Cultura Cristã, 2004, pp. 158-159.
[14] LOPES, Hernandes Dias. Comentário bíblico expositivo de Apocalipse. Hagnos, 2005, p. 21.
[15] CLEMENTE, Tito Flávio. Stromata 3.4.
[16] CESAREIA, Eusébio de. História Eclesiástica. CPAD, 1999, pp. 107-108.
[17] EASTON, George. Easton’s Bible Dictionary: Nicolaitanes. Thomas Nelson, 1897.
[18] CALVINO, João. Institutas. I, VI, 1.
[19] SPURGEON apud BLANCHARD, John. Pérolas para a vida. Edições Vida Nova, 1993.
[20] HAVNER apud BLANCHARD, John. Op. Cit.
[21] ROMEIRO, Paulo. Op. Cit., pp. 194-205.
[22] Ibid, pp. 199-205.

quarta-feira, 17 de setembro de 2014

A Vingança pertence a Deus

Vingança é um prato que se come frio, diz o ditado popular. O sabor desse prato não é amargo e nem salgado, mas doce, segundo pesquisa realizada por neurocientistas suíços que se basearam em tomografias cerebrais.[1]
A pesquisa, liderada pelo Professor Dominique de Quervain, da Universidade de Zurique, consistiu em uma atividade realizada com duplas. Afirmando que se tratava de um estudo econômico, quinze estudantes do sexo masculino e de idade entre 20 e 30 anos se submeteram a um jogo que envolvia trocas monetárias.
Nesse jogo, um dos jogadores (A) podia conceder todo o seu dinheiro ou parte dele a seu par (B), o qual poderia devolver parte do que recebeu ou nada. Caso o primeiro jogador resolvesse dar todo seu dinheiro, sua verba poderia ser multiplicada quatro vezes e o jogador B poderia dividir sua recompensa com A. O primeiro jogador teria motivação suficiente para dar todo seu dinheiro a B, uma vez que ambos poderiam sair beneficiados. Caso B se recusasse a dividir o montante, A poderia se vingar de seu par, contanto que pagasse por isso.
Enquanto os jogadores passavam pelo evento, tomografias por emissão de pósitrons registravam a atividade cerebral deles, sendo possível verificar um claro padrão de atividade nos gânglios de base dorsal – área cerebral envolvida na sensação de prazer – quando um jogador penalizava o outro por ter sido egoísta. Os resultados da pesquisa mostraram que, as pessoas possuem uma sensação de auto satisfação e de prazer quando se vingam.

A vingança e a psicologia
Segundo a psicóloga Milena Frankfurt, o desejo de se vingar é algo inerente do ser humano, entretanto, o ato de se vingar e como se vingar “é particular e especifico de cada pessoa. Está bastante relacionado com a capacidade de perdoar que a pessoa exerce ou não durante a sua vida.”[2] A fim de mostrar a naturalidade desse sentimento, Milena comenta que, todos “nós já imaginamos aquela pessoa que nos feriu se machucando de alguma maneira, mesmo que em fantasia”.
Saber lidar com as frustrações da vida é um fator preponderante na visão psicológica sobre esse assunto. Pessoas rancorosas tendem a imaginar com mais frequência atos vingativos, sem necessariamente executar o que está em suas mentes. Em outros casos, acontece a autoflagelação psíquica, na qual a pessoa ofendida usa toda a energia de sua amargura contra si mesma, vivendo estágios de depressão, transtornos alimentícios e/ou problemas psicossomáticos.
Na sociedade hodierna conseguimos verificar esse tipo de comportamento em situações ocorridas na dissolução de um casamento ou nas brincadeiras de crianças que outrora eram taxadas como pueris, isto é, típico do período compreendido entre a infância e a adolescência.
No primeiro caso, atitudes vingativas começam a brotar quando o casamento não vai bem e os pais usam os filhos para servirem de arma um contra o outro. Depois de consumado o divórcio, as coisas tendem a piorar. Usualmente um dos ex-cônjuges, inconformado com a separação, passa a difamar, desmoralizar e/ou criar descrédito sobre a figura da outra parte para o(s) filho(s). Esse processo é chamado de Síndrome da Alienação Parental (SAP) e apesar de produzir satisfações esporádicas a quem pensa se vingar, prejudica a formação dos filhos.[3]
O caso das brincadeiras de crianças já foi tratado como algo tão comum na vida humana, que chegou a ser comparado como uma passagem para a vida adulta[4]. Gozações com o mais gordinho da turma, o mais alto, o mais magro, o mais narigudo, etc, fizeram parte da infância de todas as pessoas. Até o profeta Eliseu passou por essa situação constrangedora quando os meninos gritavam repetidamente “sobe calvo” (2 Rs 2.23).
Todavia, as consequências desses bullyings – baixa autoestima, baixo rendimento, estresse, introspecção, timidez, ansiedade e agressividade, dentre outros – têm despertado a atenção de estudiosos para outro rumo. Essas consequências podem evoluir para estágios ainda mais graves e gerar transtornos psicopatológicos profundos, tais como fobias, pensamentos suicidas, depressões e desejos de vingança.
É o caso trágico do massacre em Realengo que chocou o Brasil em 2011. Wellington Menezes de Oliveira entrou na Escola Tasso da Silveira e matou 12 crianças, além de ferir outras 12. Em um dos vídeos encontrados pela polícia, o atirador dizia que sofria bullying e justificou seu ato criminoso dizendo: “que o ocorrido sirva de lição, principalmente para as autoridades escolares, para que descruzem os braços diante de situações em que alunos são agredidos, humilhados, ridicularizados, desrespeitados".[5]

A Vingança na Justiça brasileira
Nos vários casos noticiados pela mídia brasileira, podemos ver o desejo de punição das pessoas quando algo trágico acontece, principalmente quando o veículo de informação é um canal que abusa do sensacionalismo. Normalmente essa punição está associada ao desejo de vingança. Há uma linha muito tênue entre uma e outra.
Este sentimento vingativo é constantemente visto nas produções hollywoodianas, nos mais variados filmes e seriados e possui grande aceitação do público. Muitas tramas seguem o mesmo tipo de raciocínio: alguém faz algum tipo de mal para alguma família e quem foi prejudicado resolve se vingar do ocorrido. Muitos telespectadores ficam torcendo para que a vingança ocorra com êxito.
No filme “Tempo de Matar”, é difícil não haver identificação (empatia) entre o personagem que se vinga e quem o assiste. O longa, além de possuir um dos melhores diretores de cinema dos EUA, Joel Shumacher, e um elenco de primeira (Samuel L. Jackson, Sandra Bullock, Mathew McConaughey, Oliver Platt e Kevin Spacey), consegue estimular o senso de justiça (para não dizer senso de vingança) que há em cada ser humano.
A história se passa em Canton, Mississipi. Dois homens brancos espancam e estupram uma menina negra de dez anos. Os estupradores foram presos, mas teriam o valor de fiança decretada no tribunal. O pai da garota, Carl Lee Hailey (interpretado por Jackson), fica atônito e desesperado, e resolve fazer justiça com as próprias mãos, matando-os na frente de todos e vingando-se do ato cruel que eles cometeram.
Embora sua sede de vingança tenha sido saciada, Hailey é preso e enfrenta um julgamento complexo por conta de seu duplo assassinato. O filme é capaz de dividir a opinião dos telespectadores, afinal, estamos de frente de um caso trágico que se finalizaria com impunidade e ao mesmo tempo diante de um ato criminoso de justiça feita com as próprias mãos. Dificilmente quem assiste o filme não torce para que Hailey seja absolvido.
No Direito Brasileiro, a autotutela, chamada popularmente de “justiça com as próprias mãos”, é crime previsto no Artigo 345 do Código Penal Brasileiro, mas podemos encontrar algumas exceções (excludentes de ilicitude), como nos casos que se seguem:
I – Em casos como o do Movimento Sem Terra (MST), nos quais pessoas tentavam se apossar de alguma propriedade, o possuidor tem direito de se manter no local, usando até mesmo de força própria, contanto que essa resistência não ultrapasse o necessário à manutenção ou restituição da posse (Artigo 1.210 do Código Civil de 2.002);
II – Qualquer pessoa pode efetuar voz de prisão caso se depare com alguém em flagrante delito (Artigos 301 e 302 do Código de Processo Penal);
III – De acordo com o Artigo 23 do Código Penal Brasileiro, não há crime quando o agente pratica o fato em quatro circunstâncias: 1) em estado de necessidade (detalhado no Artigo 24), 2) em legítima defesa (detalhado no Artigo 25), 3) em estrito cumprimento de dever legal ou 4) no exercício regular de direito.

Origens do sentimento de vingança
O sentimento de vingança, bem como o comportamento agressivo, tem sua gênese, segundo a psicologia, primeiramente no instinto do homem. Além disso, fatores como a aprendizagem, aspectos situacionais, frustrações e provocações, contribuem para a execução desses atos. Essas posições não levam em conta fatores de personalidade, fisiológicos e sociológicos.[6]
A exemplo do filme supracitado, os moradores do bairro Cidade Tiradentes, Zona Leste de São Paulo, invadiram, depredaram e picharam um imóvel do local.[7] O motivo seria a indignação da população após o estupro e morte de Angélica Barbosa Romasco, de oito anos. A menina brincava na frente de casa na noite do dia 15 de Maio deste ano. Seu corpo foi encontrado algum tempo depois em um terreno baldio do bairro, com várias perfurações e hematomas no corpo.
O estuprador desfigurou o rosto da menina com um alicate e usou uma chave de roda para matá-la. Andreus Vieira Batista, que já conhecia a criança, bem como a família, confessou o crime e não mostrou sinais de arrependimento, quando preso no dia 17 de Maio.
Movidos por fatores de frustrações, os moradores do bairro destruíram o imóvel onde o criminoso residia no dia 18 de Maio, numa clara demonstração de inconformismo e descrença em relação ao poder de punir do Estado.
Outra possível porta de entrada para os atos agressivos e consequentes sentimentos vingativos pode estar na sala de nossa casa. Somos atraídos por filmes de ação, de lutas, policial e de suspense. A presença de armas e de violência física, emocional e verbal está constantemente presente nessas categorias de filmes, os quais estão à disposição de toda faixa etária, inclusive das crianças, apesar da censura. De acordo com alguns estudos[8], esses tipos de cenas podem trazer influências comportamentais nas pessoas, como insensibilidade frente a atrocidades, imitação do modelo cinematográfico e atitudes violentas como resposta às frustrações.
Além dos milhares de filmes que instigam o sentimento vingativo, existem outras programações televisivas que fazem sucesso com esse mesmo tipo de trama. No Brasil não faltam novelas (nacionais e mexicanas) e séries importadas dos EUA. Todos esses programas retratam os fatores citados acima, que originam o sentimento vingativo, seja no triângulo amoroso da novela, na lembrança que o lutador tem em sua luta final do filme ou nas histórias das séries americanas.
Por falar em série, recentemente a maior emissora de TV brasileira começou a transmitir um seriado que conquistou um dos maiores índices de audiência estadunidenses. Revenge, que no português significa “Vingança”, é uma série baseada no livro “O Conde de Monte Cristo”, de Alexandre Dumas.
O seriado global conta a saga vingativa de Amanda Clarke, alguém que perdeu o pai e a infância depois de uma conspiração. David Clarke, seu pai, foi acusado injustamente de terrorismo e morto na prisão para que a verdade permanecesse oculta enquanto Amanda passou a infância numa casa de detenção juvenil. Assim que completou dezoito anos, ela foi solta, recebeu sua herança e uma caixa com informações sobre as pessoas que armaram para seu pai. Decidida a se vingar dessas pessoas, ela muda seu nome para Emily Thorne e volta a sua antiga cidade, Hamptons.
Os principais conspiradores seriam o casal Conrad e Victoria Grayson – antigo patrão e antiga amante de David – mas no desenrolar dos episódios percebe-se que eles são apenas a ponta do iceberg. Para concluir sua vingança, Amanda conta com o apoio de seu amigo bilionário, Nolan Ross, um gênio da espionagem e da vigilância eletrônica, e de sua melhor amiga, Ashley Davenport, que trabalha para os Graysons.
A série é produzida pela emissora norte-americana ABC e já está com sua terceira temporada agendada nos EUA, além de vir mantendo altos índices de audiência. No Brasil a primeira temporada estreou em 14 de Abril desse ano. De acordo com o site oficial, Revenge não é uma história sobre perdão, mas um show sobre retribuição.[9]

O lado bom da TV
Mas nem tudo no cinema é ruim. Existem alguns filmes que dramatizam muito bem a atitude oposta à da vingança: o perdão. Dentre os poucos filmes, podemos destacar pelo menos dois: “O Poder da Graça” e “Graça e Perdão”, lançados em 2010 e 2011, respectivamente.
Em “O Poder da Graça”, vemos Mac McDonald, um policial que perdeu seu filho num acidente ser transformado pela Graça de Deus. O menino morreu atropelado por bandidos enquanto andava de bicicleta na calçada de casa e essa tragédia trouxe grandes revoltas no pai do menino que não conseguiu superar a ira e sentimentos vingativos por vários anos. Sua vida se tornou rancorosa e amargurada, o que lhe impediu inclusive promoções no departamento de polícia. Embora ele fosse mais experiente, viu seu companheiro assumindo o posto de Sargento, o qual passou a ser seu parceiro.
Em casa as coisas também não iam bem. Seu relacionamento com a esposa era péssimo, pois sua amargura lhe fazia ataca-la com palavras revestidas de ódio. Seu filho mais novo não tinha um pai amigável, com quem podia conversar e ia muito mal na escola. Tudo parecia terrível naquela família e depois de uma discussão entre pai e filho, o rapaz se ajuntou com alguns ladrões num assalto a uma loja. O pai, em seu serviço policial, foi até o local e atirou no próprio filho sem saber que era ele. Seu parceiro, que era pastor, ofereceu-lhe um ombro amigo enquanto via-o arrasado, mas recebeu palavras iracundas e racistas, ainda recheadas de amargura e agora de culpa, pelo tiro que deu no próprio filho.
O poder da Graça é mostrado em duas situações: primeiramente na cirurgia que o rapaz precisou ser submetido. Um de seus rins não funcionava e o outro que era normal teria que ser retirado, pois foi baleado. Se não encontrasse um doador, corria risco de morte. Nesse ínterim é que o Sargento Wright, pastor e parceiro de McDonald se dispõe a doar um de seus rins para ajudar o filho de seu colega. Essa atitude mexeu com o policial durão e o levou a ter um encontro com Cristo.
O segundo ato de Graça do filme se dá no final dele. Um dos homens que dirigia o carro que atropelou o menino foi preso, converteu-se a Jesus e queria pedir perdão aos pais do garoto, mas não conseguia chegar até eles. Um dia, quando o casal estava na igreja, o homem consegue entrar e pedir perdão aos pais do garoto. Somente um coração quebrantado pela Graça de Deus poderia retribuir o mesmo favor divino de perdoar a quem o havia ofendido.
Já o filme “Graça e Perdão” mostra a dificuldade do ser humano em perdoar. O longa é baseado em fatos reais e conta como um homem entrou numa escola de uma comunidade Amish no dia 02 de Outubro de 2006. Nessa ocasião, o homem matou cinco meninas e deixou outras cinco em estado crítico. Logo em seguida, ele se matou.
As pessoas que perderam as filhas perdoaram o assassino e se mobilizaram para ajudar a família do atirador. Todavia, uma das mães não conseguiu perdoa-lo tão facilmente assim. Ela sabia do que a Palavra de Deus diz. Seu marido e sua comunidade conseguiam praticar o perdão, mas ela não estava tendo forças para isso, até que ouve o relato de como sua filha reagiu antes de morrer, liberando Graça e Perdão sobre a família do homem que a fez esse terrível mal.

A Vingança e a música
Até mesmo as músicas possuem o tema presente em suas letras. No meio secular podemos fazer algumas citações. Lupcínio Rodrigues, compositor que marcou as décadas de 30 a 50, buscava em sua própria vida inspirações para suas canções. Ele acreditava que um homem devia ter uma mulher em casa e várias outras na boemia. Dessa forma, suas músicas eram constantemente baseadas em suas experiências extraconjugais, como é o caso da música “Vingança”.
Lupcínio foi traído por uma de suas amantes, cujo nome era Mercedes.[10] Em um desabafo a respeito desse ocorrido, ele escreve “Vingança”, que foi gravada por Linda Baptista em 1951. A canção fez grande sucesso no Brasil e até mesmo no Japão.
Nessa música, ele descreve como gostou quando ficou sabendo que encontraram sua ex-amante em um bar, bebendo e chorando. Perguntaram-na sobre ele, mas a resposta não saiu porque um soluço cortou sua voz. A canção é finalizada com o sentimento vingativo extenuado em suas letras: “Mas, enquanto houver força em meu peito, eu não quero mais nada. Só vingança, vingança, vingança. Aos santos clamar, ela há de rolar como as pedras que rolam na estrada, sem ter nunca um cantinho seu pra poder descansar.”
Essa música lhe rendeu um bom dinheiro e Lupcínio comprou um carro, o qual batizou pelo nome homônimo da canção. Essa mesma composição já foi interpretada por outros grandes nomes da música brasileira, como Maria Bethânia e Nelson Gonçalves.
Numa música mais recente, Sorocaba, que faz dupla com Fernando, mostra um dos motivos pelos quais algumas pessoas acabam traindo o cônjuge: “A Vingança” (nome da música). Determinada mulher tomou seu banho, vestiu-se com a melhor roupa, perfumou-se, tomou um gole de whisky, fumou seu cigarro, pegou as chaves do carro e saiu para se vingar: “É hoje que ela vai se vingar, que ela vai se entregar. Vai ficar com o primeiro que ver (...) A vingança vai doer”.
Até mesmo letras religiosas não escaparam desse tema. Certa música interpretada pela cantora gospel, Damares, relata o período de adversidade que enfrentamos. Muitas vezes, nesses momentos em que precisamos de ajuda, as pessoas se afastam e nos sentimos mal com isso: “Quem te viu passar na prova e não te ajudou, quando ver você na benção vão se arrepender, vai estar entre a plateia e você no palco (...) Quem sabe no teu pensamento você vai dizer: meu Deus, como vale a pena a gente ser fiel. Na verdade a minha prova tinha um gosto amargo, mas minha vitória hoje tem sabor de mel.”
Não é fácil enfrentarmos acusações injustas, difamações e maledicências. Muitas pessoas não sabem lidar com essas situações e acabam nutrindo um sentimento vingativo contra quem o fez. Na música gospel “Estou de Pé”, Rose Nascimento interpreta o desejo que se passa no coração de muita gente, o de mostrar para aquela pessoa que estamos por cima e não por baixo: “Vai lá e pega quem falou da minha vida, avisa que eu Estou de Pé. E quem contou o fim dos meus dias, avisa que eu Estou de Pé (...) Vai ter até quem não acredita e avisa que Estou de Pé”.
Seria interessante se descobríssemos alguma canção que se baseasse em Mt 5.44 ou Lc 6.28: “Amai aos vossos inimigos, e orai pelos que vos perseguem”. “Bendizei aos que vos maldizem, e orai pelos que vos caluniam”. Será que encontramos?

Como as religiões enxergam a vingança?
As primeiras civilizações buscaram formas de se organizarem e uma delas era através das leis civis. Quando alguém cometia algo que desonrava a ética de determinado povo, deveria haver uma punição. Embora punição e vingança pareçam coisas muito distintas, elas estão mais próximas do que podemos imaginar. A punição é o que satisfaz quem sofreu prejuízo. A impunidade gera desejos de fazer justiça própria, o que leva à vingança.
Uma das formas mais antigas de punição é o da Lei de Talião, uma relação recíproca entre o crime e a pena, o famoso “olho por olho, dente por dente”, cujos primeiros indícios são encontrados no código de Hamurabi e na Lei de Moisés. Juntamente com suas leis civis, havia os conceitos religiosos. Vejamos como as principais religiões enxergam o tema vingança.
O Budismo ensina que, todas as ações “são comandadas pela mente:
a mente é o senhor delas, a mente é quem as fabrica”. Dessa forma, não se devem abrigar pensamentos hostis, de coisas que maltrataram, golpearam, derrotaram ou roubaram no passado, pois “aqueles que abrigam pensamentos como esses a raiva nunca será apaziguada”, uma vez que “a raiva nunca é apaziguada com outras ações enraivecidas, ela é apaziguada pela não-raiva”. Para o budismo, essa é “uma lei imutável e atemporal” (Dhammapada 1.3-5).
O islamismo ensina no Alcorão que, “se tiverdes que vos vingar vingai-vos na medida em que fostes agredidos. E se tolerardes com paciência, melhor será para vós” (Surata 16.126). Além disso, faz alusão à lei de Talião: “Ó vós que credes, a pena do talião é prescrita contra quem infligir à morte: homem livre por homem livre, escravo por escravo, mulher por mulher” (Surata 2.178b).
Embora haja personagens e vários deuses vingativos em seus escritos sagrados, o hinduísmo, de uma forma genérica, também não incentiva a prática da vingança. Como esta é mais uma religião que crê em reencarnações e no Karma, a prática de se vingar formaria um ciclo interminável de mortes e nascimentos para aquele que o faz. Para os hindus, portanto, levar uma vida pacífica e de boas ações é melhor. Um trecho do Thirukural diz que, “perdoar ofensas é sempre bom, esquecer-se delas, traz ainda mais louvores” e que "aqueles que ferem os outros vingativamente são inúteis, enquanto aqueles que suportam estoicamente são como o ouro guardado" (Thirukural 152, 155).
O Taoísmo ensina uma busca de paz interior, de equilíbrio entre as coisas. Os três tesouros dos ensinamentos de Lao Tsé são a humildade, a simplicidade e a afetividade. Encontramos no capítulo 3 do Tao Te Ching, principal obra do Taoísmo, uma amostra do que seria a entrada dos males na vida humana: “Não valorizando os tesouros, mantém-se o povo alheio à disputa. Não enobrecendo a matéria de difícil aquisição, mantém-se o povo alheio à cobiça. Não admirando o que é desejável, mantém-se o coração alheio à desordem”. O homem sagrado, isto é, o homem que consegue unir a consciência pura com a vida infinita, deve esvaziar o coração de intenções, razões e emoções e encher-se de vitalidade. Dessa forma, ele não viverá na perversidade e evitará contendas.
O confucionismo foi influenciado pelo taoísmo e ensina princípios humanistas. Em sua doutrina maior, Jen, a prática da cortesia, complacência, bondade e benevolência são incentivadas, sendo, portanto, contrária a atos vingativos e violentos. Na obra doutrinal do confucionismo, “Os Analectos”, podemos ver esses ensinos: “...Existe uma palavra que possa guiar toda a nossa vida? (...) Não seria reciprocidade? O que não desejas para ti, não faça aos outros” (15.24). Ele ensina, ainda, que, “um homem sem humanidade não poderia viver por muito tempo na adversidade nem poderia conhecer a alegria por muito tempo. Um homem bom apoia-se em sua humanidade, um homem sábio beneficia-se de sua humanidade” (4.2), pois “se ele sobrevive sem isso é pura sorte” (6.19).
Para Alan Kardek, quem se vinga é “cem vezes mais culpado do que o que enfrenta seu inimigo o insulta em plena face”. O ato vingativo para ele, é como um costume selvagem, por isso, “Todo espírita que ainda hoje pretendesse ter o direito de vingar-se seria indigno de figurar por mais tempo na falange que tem como divisa: Sem caridade não há salvação!” e que o espírita não deve “ceder ao impulso da vingança, senão para perdoar”.[11]
Existe, ainda, a posição das religiões-afro frente às atitudes de vingança. Há livros no mercado que ensinam como prejudicar outras pessoas através de feitiços e encantamentos[12]. Alguns desses feitiços seriam: colocar uma pessoa louca, destruir, arruinar, colocar feridas, trazer separações matrimoniais, fazer perder tudo o que tem, fazer ir embora, fazer vingança e até mesmo matar.
E o cristianismo, o que diz? Vejamos a seguir.

A vingança no Antigo Testamento
Freud entendia que o sentimento de vingança é instintivo no homem, mas de acordo com a Bíblia, esse sentimento faz parte da depravação total, da natureza decaída do homem, da nossa herança na queda de Adão (Rm 5.12). Depois da queda, o homem passou a viver com tendência para o mal, nossa natureza foi corrompida e se tornou propensa para o pecado. Sproul disse que não somos pecadores porque pecamos, mas que pecamos porque somos pecadores, pois herdamos de Adão uma condição corrupta de pecaminosidade.[13]
Foi essa tendência que levou Caim a matar o próprio irmão. Movido de ciúmes, ele não quis ouvir a voz de Deus, que o advertiu a se dominar desse impulso repugnante, mas cedeu a suas inclinações carnais (Gn 4.7).
Devemos repreender nossos filhos e até castiga-los quando necessário (Pv 13.24; 22.15; 23.13,14). Todavia, deve haver controle emocional para que a punição não se torne em vingança. A repreensão é para correção e não para autossatisfação. Noé não se conteve e acabou usando de palavras imprecatórias contra seu neto Canaã (Gn 9.22-27).
Assim como Caim e Noé, temos vários outros exemplos de pessoas que agiram impulsionadas por suas emoções na Bíblia. Entretanto, o motivo desses casos serem narrados não é para que os copiemos e sim para que aprendamos com essas falhas e busquemos fazer o certo diante de Deus.
Embora haja casos de fracassos, há também casos onde a vingança foi derrotada. Esaú nutriu o desejo de matar seu irmão por vários anos. Só de Jacó pensar em Esaú quando retornava para sua terra, ele sentia frio na espinha. O ódio que estava alojado no coração de Esaú foi quebrado quando os irmãos se reencontraram e a vingança deu lugar ao quebrantamento (Gn 33.1-4).
Do mesmo modo, José, um dos filhos de Jacó, poderia ter agido vingativamente contra seus irmãos depois das terríveis experiências às quais foi submetido: os irmãos debocharam dele, tiveram ciúmes e quiseram mata-lo. Jogaram-no numa cisterna e depois resolveram vende-lo como escravo, como se José fosse um pedaço de pão. Quando se reencontrou com os irmãos aproximadamente vinte anos mais tarde, não ficou remoendo as coisas do passado, mas perdoou-os. De sua vida podemos tirar lições magníficas.[14]
Isso sem falar de Davi, que foi perseguido injustamente por Saul inúmeras vezes. Davi chega a descrever a sensação de ser perseguido em alguns de seus salmos. Ele até teve oportunidade de se vingar de Saul pelo menos duas vezes, mas não o fez, pois entendia que essa causa deveria ser julgada por Deus e não por ele (1 Sm 24; 26).
Temos, ainda, na Antiga Aliança, exemplos de contramedidas criadas por Deus a fim de evitar a propagação de vinganças sistêmicas. No caso de Caim, foi-lhe posto um sinal “para que não o ferisse quem quer que o encontrasse” (Gn 4.15). Com o advento da Lei, as punições objetivavam reciprocidade, evitando impunidade e reincidência. A máxima da Lei era vida por vida, olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé (cf Dt 19.20,21). Caso houvesse morte por legítima defesa, a pessoa que matou deveria ficar exilada em uma cidade de Refúgio até a morte do Sumo Sacerdote, a fim de evitar novas vinganças (Nm 35).

A vingança no Novo Testamento
Encontramos no Novo Testamento fortes referências sobre como lidar com os sentimentos vingativos. Os ensinos de Jesus começam logo em Suas primeiras palavras. Das nove bem aventuranças, podemos dizer que quatro dizem respeito a comportamentos opostos ao sentimento exposto: humildes de espírito, mansos, misericordiosos e pacificadores (Mt 5.3,5,7,9).
Ainda no sermão da montanha, Jesus explica que, embora a Lei de Moisés ensinasse o olho por olho, dente por dente, o plano divino é que não sejamos vingativos. Ao invés de respondermos na mesma moeda, devemos “dar a outra face” (Mt 5.39-41). Semelhantemente, Paulo ensina que não devemos responder o mal com mal, mas até mesmo ajudar aqueles que nos perseguem (Rm 12.20,21).
Em outras palavras, se alguém gritar com você, não há necessidade de revidar com gritos, pois a “resposta branda desvia o furor, mas a palavra dura suscita a ira” (Pv 15.1). Quando a pessoa revida a grosseria, acontece o interminável efeito pingue-pongue.  
Apesar da dificuldade humana, a melhor resposta para vencer a vingança é exercendo o perdão. Na parábola do credor incompassivo, Jesus mostra a necessidade de perdoarmos nossos semelhantes, pois as ofensas horizontais (entre os homens) não se comparam com nossas dívidas verticais (contra Deus).
Essa parábola foi proposta como ilustração para a dúvida de Pedro: “Senhor, até quantas vezes pecará meu irmão contra mim, e eu hei de perdoar? Até sete? Respondeu-lhe Jesus: Não te digo que até sete; mas até setenta vezes sete” (Mt 18.21-22). Se Deus nos perdoou de uma dívida impagável, quem somos nós para negarmos o perdão às pessoas?
Esta doutrina está inserida na oração modelo que Jesus ensinou a seus discípulos (Mt 6.12-15) e pode ser vista também na teologia paulina (Ef 4.32). Ao invés de agirmos reativamente, obedecendo aos instintos de nossa natureza caída, devemos agir pró-ativamente, de forma pacífica, evitando intrigas, dissensões, facções, contendas e vinganças (cf Rm 12.18; Hb 12.14).
Questionado sobre qual era o maior mandamento da Lei, Jesus respondeu que o primeiro maior é amar a Deus de todo coração, alma e entendimento, fazendo alusão a Dt 6.5. Complementando a resposta, o Messias ainda deixou espaço para o que considerou o segundo maior: “Amarás ao teu próximo como a ti mesmo” (Mt 22.39). Este segundo maior mandamento está registrado em Lv 19.18: “Não te vingarás nem guardarás ira contra os filhos do teu povo; mas amarás o teu próximo como a ti mesmo.” (Lv 19.18 – grifos meus).
Apesar de tudo isso, não é tão simples assim amar ao próximo quando este nos fere sobremaneira. Não é fácil para um pai amar um homem que matou seu filho maliciosamente, ou para uma mãe perdoar alguém que tenha estuprado sua filha. O que fazer nessas circunstâncias? Como amar este inimigo? O conselho bíblico é para que “se for possível, quanto depender de vós, tende paz com todos os homens. Não vos vingueis a vós mesmos, amados, mas dai lugar à ira de Deus, porque está escrito: Minha é a vingança, eu retribuirei, diz o Senhor” (Rm 12.18,19).
Um dos meios pelos quais Deus executa esta vingança é através da justiça humana. Ele usa as autoridades competentes para que os homens sejam julgados (Rm 13.1-4). Embora nem sempre esses órgãos executem as leis com eficácia e algumas leis nem sequer pratiquem uma verdadeira justiça, nada escapará do juízo vindouro de Deus. Neste juízo, a punição será o sofrimento, a perdição eterna e o banimento da presença do Senhor (2 Ts 1.4-10). Horrenda coisa é cair nas mãos do Deus vivo (cf Hb 10.26-31).

Considerações finais
A vingança está presente nas mais variadas áreas da vida. Podemos encontra-la nos contos infantis, desenhos animados, artes, filmes, seriados, histórias em quadrinhos, novelas, mitologias, religiões, músicas, livros, esportes, jornais, história, sociedades, etc. Apesar de encontrarmos seus efeitos no externo, a vingança procede do interno (Mt 15.19,20).
A vingança pode até produzir prazer, pode até ser um prato que se come frio, pode até parecer saborosa, quem sabe até tenha sabor de mel? Apesar de tudo isso, ela não é a melhor resposta e certamente causará indigestão.
Quem ocupa a mente com vingança, sofrerá danos físicos, emocionais e espirituais. Físico porque a pessoa estará mais suscetível a outros tipos de doença, pois a liberação de cortisol no organismo reduzirá a defesa do organismo. Emocional porque o indivíduo estará amontoando lixo em seus pensamentos e não terá uma mente sã. E espiritual porque existirá sempre uma pedra de tropeço atrapalhando o crente em sua santificação e comunhão com Deus (Hb 12.14). Isso sem falar nos prejuízos sociais.
Ao invés de “pré-ocupar” a mente com vinganças, “pensai nas coisas lá do alto” (Cl 3.2). É melhor trazer à memória o que nos dá esperança (Lm 3.21), esquecendo-nos “das coisas que atrás ficam, e avançando para as que estão adiante”, prosseguindo “para o alvo pelo prêmio da vocação celestial de Deus em Cristo Jesus.” (Fp 3.13,14).
Notas


* Este artigo foi publicado pela Revista Defesa da Fé, Edição 105.
[1] KNUTSON, Brian. Sweet Revenge? Revista Science, Vol. 305, Issue 5688, 27 August 2004, pp. 1246-1247.
[2] Entrevista com Milena Frankfurt para a revista Coops. Disponível em: http://www.marisapsicologa.com.br/desejo-de-vinganca.html. Acesso em 05 de Julho de 2013.
[3] GARDNER, Richard. Parental Alienation Syndrome vs. Parental Alienation: Which Diagnosis Should Evaluators Use in Child-Custody Disputes? American Journal of Family Therapy. March 2002, pp. 93-115.
[4] MASCARENHAS, Suely. Gestão do bullying e da indisciplina e qualidade do bem-estar psicossocial de docentes e discentes do Brasil. Psicologia, Saúde & Doenças, 2006, 7 (1), pp. 95-107.
[5] Matéria sobre o massacre em Realengo. Disponível em: http://extra.globo.com/casos-de-policia/atirador-de-realengo-confessa-em-novo-video-que-bullying-motivou-massacre-1600031.html. Acesso em: 12 de Julho de 2013.
[6] RODRIGUES, Aroldo. Psicologia Social. Vozes, 1972, pp. 313-331.
[7] Matéria sobre menina de oito anos que foi estuprada e assassinada. Disponível em:  http://noticias.r7.com/sao-paulo/porteiro-suspeito-de-estuprar-e-matar-menina-de-oito-anos-e-preso-em-sp-17052013. Acesso em: 24 de Julho de 2013.
[8] RODRIGUES, Aroldo. Op. Cit. pp. 331-334.
[9] Sinopse das temporadas. Disponível em: http://abc.go.com/shows/revenge/about-the-show. Acesso em 01 de Agosto de 2013.
[10] Curiosidades sobre Lupcínio Rodrigues. Disponível em: http://vingancamusical.com.br/curiosidades.html. Acesso em 02 de Agosto de 2013.
[11] KARDEK, Alan. O Evangelho Segundo o Espiritismo. Federação Espírita Brasileira, 2013, p. 171.
[12] GIMBEREUÁ, Ogã. Ebós Feitiços no Candomblé. Eco, 1969; D'OBALUAYÊ, Batista. Feitiços e Ebós no Candomblé. Império da Cultura LTDA, 2011.
[13] SPROUL, R. C. Boa Pergunta! Cultura Cristã, 1999, p.98.
[14] COUTO, Vinicius. Os Três Choros de José do Egito. Ágape, 2013.