O Teísmo Aberto:
origens e principais doutrinas[1]
O Teísmo aberto é um pensamento teológico contemporâneo,
oriundo da metade do século XX, que entende a idéia de transcendência,
imanência e imutabilidade divinas de um modo não convencional à tradição cristã.
Trata-se de um sistema teológico cujo conceito de Deus não deve contradizer o
pensamento científico. É como se a divindade e seus atributos fossem moldados
para caber na caixa científica. Olson e Grenz explicam que o Teísmo Aberto,
também chamado de Teologia do Processo, é um caminho que busca equilibrar a
transcendência e a imanência divina ao abandonar o conceito de transcendência
estática e assumir um novo conceito de transcendência evolucionária similar ao
pensamento hegeliano, em que o estado anterior não é abandonado, mas preenchido
por um estado subseqüente.[2]
Deus poderia mudar, ou mais propriamente, evoluir de
acordo que se relaciona com suas criaturas. Sawyer, por exemplo, define o
Teísmo Aberto como “uma teologia filosófica segundo a qual a realidade é um
processo que envolve desenvolvimento, não um universo estático de objetos.”[3] Neste sistema, Deus, que é um ser pessoal e que
estabelece relacionamentos pessoais, acaba por ser afetado por tais
relacionamentos, culminando na possibilidade de mutabilidade. Daí a idéia
original de “Teologia do Processo,” pois Deus também está em processo de
mutação e crescimento, embora num nível diferente de suas criaturas.
O Teísmo Aberto nasceu com o nome de Teologia do
Processo. Duas pessoas foram fundamentais para que esse “novo” entendimento
ontológico fosse elaborado. São eles: Pierre Teilhard de Chardin (1881-1955) e
Alfred North Whitehead (1861-1947), com sua obra Process and Reality (Processo
e Realidade). Chardin entrou para a ordem dos jesuítas aos 18 anos de idade e
foi ordenado em 1911. Nesta época ele já havia se graduado em teologia e
paleontologia e em função de atuar nesta área obteve contato com muitos
arqueólogos, o que despertou nele o interesse pelo evolucionismo, área que ele
dedicou boa parte de sua vida.
A visão de Chardin era uma síntese de sua fé pessoal e da
ciência evolucionária. King explica que ele tinha uma visão mística do mundo,
da humanidade e de Deus, que era descrita por ele mesmo como uma nova maneira
de enxergar as coisas e que foi adquirida e formada através de experiência
pessoais, grandes feitos intelectuais e profundidade de novas compreensões
fundamentadas nas compreensões combinadas entre religião e ciência, expressas
através de profunda sabedoria e amor.[4]
Chardin acreditava que a ciência e o cristianismo eram
duas faces de uma mesma moeda. Visto que ele fora proibido de lecionar no Institute
Catholique em Paris, Chardin passou a atuar mais diretamente nas pesquisas
geológicas e paleontológicas e chegou a participar da descoberta dos restos
mortais pré-históricos do Homem de Pequim, na China. Adepto, portanto, de uma
teoria que contradiz o criacionismo bíblico, Chardin entendia que o
evolucionismo ensina para a humanidade uma visão processual de futuro, que
consistia numa “megassíntese,” isto é, na união de todos os povos, um tipo de
“aldeia global.” Em sua obra The Phenomenon of Man,Chardin apresentou duas
possibilidades escatológicas: a primeira era otimista, prevendo que haveria uma
redução do mal na terra e a segunda pessimista, de que o mal continuaria a
crescer junto com o bem, mas que o final seria inevitavelmente catastrófico.[5]
Essa visão evolucionista também foi empregada em sua
teologia. Para Chardin, o que entendemos tradicionalmente como imagem de Deus
precisava de uma redefinição urgente e acreditava que as pessoas ainda não
haviam encontrado verdadeiramente ao Deus que adoravam por conta dessa
definição deficiente. A verdadeira religião, para ele, não poderia ser
desenvolvida num isolamento cultural e sim mediante as experiências conjuntas
de diferentes tradições religiosas. Para se ter dimensão de como o
evolucionismo influenciou completamente sua visão teológica, King nos conta que
ele registrou em seu diário no ano de 1950 que “Deus não está morto – Mas, ele
muda” e que escreveu numa carta endereçada a um amigo sobre a “transformação
(...) do ‘Deus do Evangelho’ no ‘Deus da evolução’ – uma transformação sem
deformação.”[6] Essas frases, sem dúvida, refletem a essencialidade da
Teologia do Processo.
Apesar dessas visões chardinianas (que tiveram maiores
influências no acamicismo católico), o principal expoente do moderno Teísmo
Aberto professado por alguns “protestantes” e “evangelicais” foi Alfred
Whitehead, que atuou como matemático até o ano de 1924, quando recebeu um
convite para lecionar filosofia na universidade de Harvard. Nessa nova missão,
Whitehead se propôs em restabelecer a importância da metafísica (ele cria que
toda ciência afirma tacitamente algum nível de metafísica) num contexto em que
o enfoque era mais científico e antimetafísico.[7]
Na metafísica de Whitehead, a realidade é construída a
partir de quatro conceitos absolutos, a saber: 1) A ocasião real; 2) Objetos
eternos; 3) Deus; e 4) A criatividade. A ocasião real é algo de natureza
efêmera e que passa por mutabilidade e é absorvida pelos pontos seguintes. Os
objetos eternos são padrões e qualidades, tais como cores, emoções, prazeres,
dores, etc. Deus é uma entidade em meio a inúmeras outras entidades. É alguém
que a despeito de antes de toda a criação, é “junto com toda a criação.”[8] Ele (Deus) retém todas as inovações realizadas à medida
que o futuro se torna presente e desaparece com o passado. Finalmente, a
criatividade, para Whitehead, não é outra coisa existente e sim o princípio de
unidade que está por detrás da variedade de entidades reais, bem como a fonte
de individualidade dessas entidades que participam do “progresso criativo.”[9]
De qualquer modo, Whitehead tinha uma concepção de Deus
completamente fora daquilo que as Escrituras revelam. Ele não é onipotente e
tampouco onisciente. No caso da onipotência, Whitehead cria que sua soberania
não passava de uma colocação antiquada da igreja, que conferiu atributos à
divindade que deveriam ser atribuídos a César, o déspota. Já no que se refere à
onisciência, ele negava completamente o sentido clássico de se conhecer o
futuro. Se no molinismo Deus conhece todas as possibilidades, mas ao mesmo
tempo conhece qual deles será a realidade, para Whitehead, Deus conhece o
futuro apenas como uma possibilidade, nunca como uma realidade.[10]
Lewis Ford, um expoente do Teísmo Aberto, explicou que a
visão whiteheadiana é ralacional (que inclusive é outro nome para o Teísmo
Aberto, Teologia Relacional): “Assim como o mundo deve confiar que Deus
determinará o objetivo de seus esforços, do mesmo modo também Deus deve confiar
no mundo para alcançar esse objetivo.”[11] Como se pode ver, a divindade ensinada na metafísica de
Whitehead está mais para algo semi-divino, assemelhando-se mais a um ser
angélico do que ao Deus Todo-Poderoso. Sawyer corrobora com esse ponto e
explica que “Whitehead concebia um Deus limitado, que se desenvolvia
gradualmente. Sua filosofia enfatizava a natureza atomística “dipolar” da
realidade e de Deus, havendo um aspecto primordial (externo) e um aspecto
subseqüente (sujeito a mudança e ao desenvolvimento).”[12]
Todavia, quem conduziu o pensamento Whiteheadiano para o
campo da teologia, foi o pesquisador Charles Hartshorne (1897-2000). Ele
começou a lecionar na Universidade de Chicago no ano de 1928 e trabalhou com
afinco com o sistema metafísico de Whitehead, dando, entretanto, atenção
especial às implicações teológicas. Essas idéias aplicadas à teologia ganharam
a simpatia de outros estudantes e acadêmicos da Universidade de Chicago, dentre
os quais podemos destacar Henry Nelson Wieman, Bernard Loomer, Daniel Day
Williams, Bernard Meland e John B. Cobb Jr. Este último foi o terceiro maior
propagador da teologia do processo, sucedendo seu professor Hartshorne. Ele
publicou a obra A Christian Natural Theology Based on the Thought of Alfred
North Whitehead (Uma Teologia Natural Cristã Baseada no Pensamento de Alfred
North Whitehead) e fundou um periódico para divulgação dos pensamentos da
teologia do processo, o Process Studies e o Center for Process Studies
localizado em Claremont.[13]
As idéias expostas aqui podem ser vistas em teístas
abertos contemporâneos. Rice, por exemplo, explica a visão relacional de Deus
da seguinte forma: “o amor é a qualidade mais importante que atribuímos a Deus;
e o amor é muito mais do que cuidado e compromisso; ele envolve ser sensível,
bem como responsável. (...) o relacionamento de Deus com o mundo se dá num
sentido dinâmico, ao invés de estático.”[14] Esse entendimento se estende para o conhecimento de
Deus, que deixa de ser onisciente, para também ser dinâmico: “o conhecimento de
Deus também é dinâmico ao invés de estático. Ao invés de perceber todo o curso
existente da história humana em um único momento, Deus vem a conhecer os
eventos assim que eles acontecem. Ele aprende algo a partir do que se sucede.”[15]
Oord, que é um adepto do Teísmo Aberto, confessa que “as
concepções sobre Deus por parte da Teologia do Processo estão, freqüentemente,
em desacordo com as tradições teológicas reformadas do evangelicalismo
(especialmente o calvinismo). Particularmente, as noções de onipotência e
onisciência divinas e temporalidade que os teístas do processo advogam se opõem
àquilo que a tradição reformada denomina como ortodoxo.”[16] Entretanto, as divergências não são apenas em relação à
ortodoxia calvinista, e sim em relação à ortodoxia evangélica como um todo. As
Escrituras revelam um Deus que sabe todas as coisas e não uma divindade que vai
compreendendo paulatinamente as coisas no decorrer do desenvolvimento da
história humana. Esse tipo de ensino está mais para blasfêmia!
Esse mesmo erro teontológico pode ser visto nas palavras
de Bowman. Ela afirma que “onipotência e onisciência, aquelas perfeições
divinas de poder e conhecimento, nunca significaram simples, abrupta ou
ingenuamente um poder para fazer qualquer coisa e para saber qualquer coisa. Ao
invés disso, eles identificam o poder perfeito como o poder para fazer qualquer
coisa logicamente possível de ser feita (não um quadrado redondo). Conhecimento
perfeito, da mesma forma, é o conhecimento de tudo o que possa ser conhecido.”[17] Embora ela fale de um conhecimento que possa ser
conhecido, logo mais adiante acaba caindo na negação da onisciência divina ao
afirmar que “Deus conhece o futuro como algo potencial (...) mas o conhecimento
perfeito da potencialidade não é equivalente ao conhecimento de uma
atualidade.”[18] Em outras palavras, Deus até sabe todos os futuros
possíveis, como acontece com o conhecimento natural do molinismo, mas Ele não
sabe qual deles ocorrerá no Teísmo Aberto. Ele sabe conforme acontece e aprende
lições com esses acontecimentos. Clarck Pinnock também defende a mesma idéia do
conhecimento de Deus exposta aqui na pessoa de Bowman.[19]
Outra curiosidade é a limitação do poder de Deus. Segundo
as Escrituras, o Deus Todo-Poderoso é aquele que é capaz de realizar feitos
miraculosos que vão além das leis que Ele mesmo estabeleceu. Paulo declarou que
Ele “é poderoso para fazer tudo muito mais abundantemente além daquilo que
pedimos ou pensamos” (Ef 3.20). Deus é aquele que fez a terra parar ou diminuir
a rotação quando Josué orou (Js 10.12,13); é aquele que fez a sombra do sol
retroceder depois das orações de Ezequias e Isaías (2 Rs 20.11). Para que isso
acontecesse, o planeta precisou retornar alguns graus em seu movimento de
translação da órbita solar; É aquele que tem poder sobre a morte e que
ressuscitou várias pessoas. Enfim, qualquer um que assuma os relatos das
Escrituras Sagradas como relatos verdadeiros, crê que Deus pode realizar
milagres além daquilo que logicamente é possível de ser feito.
O Teísmo Aberto, portanto, trata das questões de
soberania e providência divinas, bem como da responsabilidade humana, de uma
forma desconexa com as Escrituras. Olson até diz que o Teísmo Aberto é “uma
opção evangélica legítima e arminiana.”[20] Contudo, depois de analisar cautelosamente todas essas
afirmações sobre a não onisciência e onipotência divinas, não consigo pensar
como Olson. Defender que Deus não sabe o futuro imediato e que ele, portanto,
está aberto, é o mesmo que dizer que o mundo está parcialmente ao acaso. Não
obstante, o Teísmo Aberto é falho na interpretação dos atributos absolutos de
Deus, pois uma divindade que tem poder e capacidade cognitiva limitada não
deveria nem mesmo ser chamada de divindade.
Se por um lado o molinismo pode ser adotado pelos
arminianos, o teísmo aberto deve ser rechaçado como um pensamento herético e
heterodoxo. Como tivemos a oportunidade de ver, o Teísmo Aberto não nasceu do
arminianismo, embora ele tanha ganhado espaço de maneira mais abrangente por
meio de arminianos. Também não podemos chamar o Teísmo Aberto de
hiper-arminianismo, uma vez que sua concepção de onisciência afeta diretamente
outros pontos como a providência, soberania e presciência, tornando o Deus da
Bíblia, num Deus inferior. Neste ponto concordo com o Rev. Heber Campos: no Teísmo
Aberto, “Deus fica condicionado às ações livres dos homens para planejar o
futuro dos mesmos. A doutrina da soberania divina sobre a história pessoal dos
homens fica completamente rejeitada. O Deus apresentado pelos teólogos da
abertura de Deus é realmente um Deus diminuído!”[21]
[1]
Esse texto está disponível em: COUTO, Vinicius. Em favor do arminianismo-wesleyano: um estudo bíblico, teológico e
exegético de sua relevância na contemporaneidade. São Paulo: Reflexão,
2016, pp. 266-273.
[2] GRENZ, Stanley;
OLSON, Roger. A Teologia do Século 20 e
os anos críticos do século 21: Deus e o mundo numa era líquida. São Paulo:
Cultura Cristã, 2013, p. 155.
[3] SAWYER, M. James. Uma Introdução à Teologia: das questões
preliminares, da vocação e do labor teológico. São
Paulo: Vida, 2009, p. 634.
[4] KING, Ursula. Teilhard de Chardin and Eastern Religions:
Spirituality and Mysticism in an Evolutionary World. New York: Paulist Press, 2011, p. 11.
[5] GRENZ, Stanley; OLSON, Roger. Op.
Cit., pp. 156-158.
[6] KING, Ursula. Op. Cit., pp.
183,184.
[7] BOWMAN, Donna; MACDANIEL, Jay (Orgs.). Handbook of Process Theology. Saint Louis: Chalice Press, 2006, p.
4.
[8] WHITEHEAD Apud GRENZ, Stanley; OLSON, Roger. Op. Cit., p. 401.
[9] Ibid, pp. 161,162.
[10] Ibid, p. 162.
[11] FORD, Lewis. Divine Persuasion and the Triumph of Good. In: BROWN,
Delwin; JAMES JR, Ralph; REEVES, Gene (Orgs.). Process Philosophy and Christian Thought. Indianapolis:
Bobbs-Merril, 1971, p. 298.
[12] SAWYER, M. James. Op, Cit.,
p. 594.
[13] BOWMAN, Donna; MACDANIEL, Jay. Op.
Cit., pp. 4,5.
[14] RICE, Richard. Biblical Support for a New Perspective. In: PINNOCK,
Clarck; RICE, Richard; SANDERS, John; HASKER, William; BASINGER, David. The Openness of God: a biblical challenge to
the traditional understanding of God. Downers Grove: InterVarsity Press,
1994, p. 15.
[15] Ibid, p. 16.
[16] OORD, Thomas Jay. Evangelical Theologies. In: BOWMAN, Donna; MACDANIEL,
Jay. Op. Cit., p. 254.
[17] BOWMAN, Donna. God for Us. In: BOWMAN, Donna; MACDANIEL, Jay. Op. Cit., p. 23.
[18] Ibid, p. 24.
[19] Cf. PINNOCK, Clarck. Systematic Theology. In: PINNOCK, Clarck; RICE,
Richard; SANDERS, John; HASKER, William; BASINGER, David. Op. Cit., p. 121.
[20] OLSON, Roger. Teologia Arminiana: Mitos e Realidades,
p. 256.
[21] CAMPOS, Heber. O Teísmo Aberto: um ensaio introdutório.
Fides Reformata, IX, n° 2, 2004, p. 44. Campos faz alguns equívocos nesse
artigo ao associar o Teísmo Aberto com o Arminianismo. Ele até diz,
acertadamente que, nem todo arminiano é teísta aberto, mas que todo teísta
aberto é arminiano, entretanto, relata que o teísmo aberto nasceu nos círculos
do arminianismo, o que já vimos neste capítulo ser um erro histórico-teológico.
Contudo, a opinião dele citada aqui é a mesma opinião que nutro sobre o Teísmo
Aberto. Não consigo enxergar esse ponto de vista como uma opção evangélica
legítima, senão como um pensamento explicitamente herético.
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