Este é um estudo sobre a
natureza e a abrangência da expiação de Cristo. Não se trata de um artigo
científico, mas um breve texto-base para uma lição de Escola Bíblica Dominical.
Este assunto (a expiação de Cristo) é muito importante para a igreja e é um tema
que já discutido desde que a igreja existe. Ao longo dos dois milênios de
cristandade, muitas teorias foram discutidas. Algumas delas com certa coerência
e outras perigosas. Algumas ortodoxas e outras completamente heterodoxas.
Por isso, este breve estudo
tem importância dupla: em primeiro lugar alinha as posições que foram
consideradas corretas e em segundo momento, alerta sobre outras posições que
são espúrias. Deste modo, este estudo mostrará a natureza da expiação
apresentando as principais teorias que discutiram sobre essa doutrina e se elas
possuem alguma coerência com as Escrituras ou não.
1.
Teoria do resgate pago a satanás
Esta é uma das mais antigas
teorias sobre a expiação de Cristo. Provavelmente seu “inventor” tenha sido
Orígenes. De acordo com essa teoria, o anjo caído tinha autoridade (legalidade)
para governar e oprimir a humanidade em função do pecado de Adão e da
solidariedade da raça. Deste modo, foi necessário que Jesus Cristo viesse ao
mundo para que pagasse pelo pecado da humanidade, pois isso dava legalidade ao
diabo e a seus anjos. Por meio do sacrifício de Cristo, ele teria pago essa
dívida a satanás.
Obviamente que essa teoria não
tem respaldo bíblico, visto que Cristo disse a Deus que estava pago: “Então
Jesus, depois de ter tomado o vinagre, disse: está consumado. E, inclinando a
cabeça, entregou o espírito” (Jo 19.30). A expressão “está consumado” nesse
versículo é tetelestai em grego, cujo
significado também pode ser “está pago”. De acordo com a parábola que
conhecemos como a do “credor incompassivo” (Mt 18.21-35), bem como a oração do
“Pai nosso” (Mt 6.9-14) nossas dívidas
são devidas a Deus e não ao diabo.
Além disso, o Apóstolo Paulo
disse que “havendo riscado o escrito de dívida que havia contra nós nas suas
ordenanças, o qual nos era contrário, [Jesus] removeu-o do meio de nós,
cravando-o na cruz; e, tendo despojado os principados e potestades, os exibiu
publicamente e deles triunfou na mesma cruz” (Cl 2.14,15). Não faz sentido
alguém “despojar”, “exibir” e “triunfar” pagando uma dívida. Pagar a dívida a
satanás colocaria Jesus numa posição inferior ao diabo.
2.
Teoria Mística
Esta teoria teve com principal
defensor, um dos principais teólogos liberais, o alemão Friedereich
Schleiermacher. De acordo com essa ideia, Jesus teria encarnado como um ser
humano completo em todos os sentidos, inclusive no que diz respeito à
predisposição imoral para o pecado, ou seja, o que chamamos de “pecado
original”. De acordo com a teoria mística, Jesus venceu as tentações porque foi
ajudado pelo Espírito Santo e extirpou a depravação humana na cruz, quando
reuniu esta natureza humana a Deus. Em suma, a natureza divina penetrou a
natureza humana na cruz, elevando-a ao status divina. O ser humano, portanto,
pode ser influenciado de maneira mística pelo conhecimento desta obra de Jesus
e se tornar alguém melhor.
Essa teoria está errada por
pelo menos 3 razões: primeiro porque considera Jesus como nascido debaixo do
efeito do pecado de Adão e possuidor do pecado original (Mt 1.20; Lc 1.35; Mc
2.5,6; Hb 4.15); segundo porque acaba distorcendo a perfeição da união
hipostática; terceiro porque considera a mudança no ser humano por meio de uma
influência cognitiva, ao invés de uma ação regeneradora do Espírito Santo.
3.
Teoria do Exemplo
Foi uma teoria defendida pela
grande maioria dos teólogos liberais, mas teve sua origem na época dos
socinianos (seguidores do Fausto Socino, um polonês falecido em 1604, o qual
acreditava que Jesus era apenas um homem comum, sem qualquer divindade). Atualmente,
alguns expoentes de movimentos teológicos sociais (Teologia da Libertação e
Teologia da Missão Integral) também seguem alguma ideia modificada dessa
teoria.
Uma vez que Jesus era apenas
um homem comum, sua morte não teve nenhum impacto sobre a salvação eterna e nem
mesmo sobre o pecado. Sua morte é apenas simbólica e inspira as pessoas por seu
exemplo de obediência e de desejo de ver uma sociedade melhor. Nesta teoria, o
mais importante é a ética, meio pelo qual a sociedade (que não tem nenhuma inclinação
ao pecado) pode ser melhor.
Paulo alertou aos colossenses
para que eles tivessem cuidado: “...que ninguém vos faça presa sua, por meio de
filosofias e vãs sutilezas, segundo a tradição dos homens, segundo os
rudimentos do mundo, e não segundo Cristo; porque nele habita corporalmente
toda a plenitude da divindade” (Cl 2.8,9). O mais importante nesta frase,
entretanto, é que Jesus é afirmado como Deus, algo negado pelos socinianos e
pelos liberais.
Além disso, Jesus não foi mero
ativista social. Ele veio para redimir o ser humano do maior mal que o afligiu,
a saber, o pecado: “Deus enviou o seu Filho ao mundo, não para que julgasse o
mundo, mas para que o mundo fosse salvo por ele” (Jo 3.17). Esta teoria subtrai
de Jesus sua divindade e faz releituras perigosas de outras doutrinas
essenciais do cristianismo, como o pecado e a salvação.
4.
Teoria adventista
Os adventistas do sétimo dia
defendem a ideia de que no dia 22 de Outubro de 1844 Jesus teria entrado num
santuário celeste para terminar o trabalho de expiação iniciado no Calvário. Tudo
começou quando Guilherme Miller, um pregador Batista, começou a pregar sobre a
vinda de Jesus datando-a para a data supracitada, calculando-a com base nas
2300 tardes e manhãs de Daniel (Dn 8.14). O não cumprimento desse cálculo culminou,
no ano seguinte (1845), na expulsão de Miller e de seus seguidores, bem como na
organização de um grupo que reunia os Crentes do Segundo Advento.
Ellen G. White alegou ter tido
uma visão em 1845 de Jesus entrando num santuário (o santíssimo lugar). De
acordo com ela (Spiritual gifts, p.
162), Jesus entrou nesse lugar “em 1844, para fazer uma expiação
final para todos que pudessem ser beneficiados por Sua mediação, e
para purificar o santuário.” Ela, portanto, interpretou que a data agendada por
Miller se cumpriu com Jesus voltando de maneira invisível e entrando no
santuário para completar a obra vicária e deu o nome de “juízo investigativo” a
esta doutrina.
Obviamente que tal ensino não
é menos pior do que a teoria do exemplo e constitui numa heresia grotesca, pois
posiciona o sacrifício de Cristo como algo incompleto. Além disso, tal pensamento
é baseado numa “revelação” extra-bíblica obtida por meio de uma experiência
pessoal, cujas ideias contradizem aquilo que as Escrituras revelam sobre a
natureza da expiação de Cristo.
O autor da epístola aos
hebreus declarou que Jesus, “havendo ele mesmo feito a purificação dos pecados,
assentou-se à direita da Majestade nas alturas” (Hb 1.3). Ele ainda declara que
“por seu próprio sangue, [Jesus] entrou uma vez por todas no santo lugar,
havendo obtido uma eterna redenção” (Hb 9.12). Sem contar que, o evangelista
conta sobre algumas aparições do Jesus ressurreto, o qual “depois de lhes ter
falado, foi recebido no céu, e assentou-se à direita de Deus” (Mc 16.19).
O autor da carta aos hebreus
também contrastou os múltiplos sacrifícios oferecidos pelos sacerdotes com o
único e suficiente sacrifício de Jesus. De acordo o autor, sua próxima aparição
não é para entrar num santuário, mas para se revelar aos crentes que aguardam
sua vinda:
“Pois Cristo não entrou num
santuário feito por mãos, figura do verdadeiro, mas no próprio céu, para agora
comparecer por nós perante a face de Deus; nem também para se oferecer muitas
vezes, como o sumo sacerdote de ano em ano entra no santo lugar com sangue
alheio; doutra forma, necessário lhe fora padecer muitas vezes desde a fundação
do mundo; mas agora, na consumação dos séculos, uma vez por todas se
manifestou, para aniquilar o pecado pelo sacrifício de si mesmo. E, como aos
homens está ordenado morrerem uma só vez, vindo depois o juízo, assim também
Cristo, oferecendo-se uma só vez para levar os pecados de muitos, aparecerá
segunda vez, sem pecado, aos que o esperam para salvação” (Hb 9.24-28)
5.
Teoria da identificação
Essa não é uma nomenclatura
utilizada ainda nas teologias sistemáticas, mas uma proposta minha num artigo
intitulado “Cristo morreu espiritualmente?” Trata-se da visão popular entre a
maioria dos neopentecostais. Nesta perspectiva, Jesus não teria,
semelhantemente à visão dos adventistas, concluído sua obra vicária no
calvário. A diferença da visão neopentecostal para a adventista, entretanto,
está no tempo. Enquanto para estes Jesus só completou Sua obra em 1844, para
aqueles, Jesus completou quando foi ao inferno, sendo castigado pelos pecados
da humanidade e se identificando com os seres humanos nesse castigo.
Nessa teoria, Jesus teria
descido ao inferno num status de morto espiritualmente para se identificar com
o ser humano e sofrer as punições do pecado. Jesus ainda teria tomado algum
molho de chaves das mãos do diabo e pregado aos espíritos em prisão uma
mensagem salvífica, pois alguns neopentecostais advogam a ideia da
“perseverança divina”, isto é, de que Jesus teria deixado uma mensagem para as
pessoas que nunca ouviram o Evangelho tivessem uma chance de salvação.
No que diz respeito completude
e suficiência do sacrifício de Cristo no calvário, podemos citar sua frase de
João 19.30: “Está consumado”. Como já adiantamos na teoria do resgate pago a
satanás, a expressão “está consumado” pode significar “está pago”. O tempo
verbal dessa passagem (tempo perfeito e modo indicativo) mostra que sua obra
está realizada, mas que seus efeitos falam até hoje. A título de comparação
podemos citar as expressões de Jesus em Mateus 4.4,6,7: “Está escrito”, que em
grego é gegraphtai. A Palavra de Deus
como Escritura não continua a ser escrita, já foi terminada, mas seus efeitos
continuam até hoje.
Além disso, vale comentar que
não existe nenhum versículo bíblico contando que Jesus tomou alguma chave das
mãos do diabo. Pelo contrário, há um versículo que afirma sua soberania e
supremacia como alguém que possui as chaves: “Não temas; eu sou o primeiro e o
último, e o que vivo; fui morto, mas eis aqui estou vivo pelos séculos dos
séculos; e tenho as chaves da morte e do hades” (Ap 1.17,18).
Finalmente, segunda chance
após a morte é incompatível com o ensino bíblico, pois “aos homens está
ordenado morrerem uma só vez, vindo depois o juízo” (Hb 9.27). Deste modo, a
ideia de “perseverança divina” é completamente equivocada e ilude as pessoas
com uma expectativa irreal.
6.
Teoria Governamental
Esta teoria foi defendida pela
primeira vez por um jurista holandês chamado Hugo Grotius (1583-1645) e
posteriormente por vários remonstrantes e metodistas. Ela acerta quando declara
que a Lei de Deus exige justiça, pois no Governo de Deus, foi estabelecido que
“a alma que pecar, essa morrerá” (Ez 18.20). O descumprimento da justiça de
Deus exige que Ele execute Sua justiça sobre os injustos.
Como Deus poderia ser clemente
para com os pecadores uma vez que impôs que o salário do pecado é a morte (Rm
6.23)? Foi para isso que Jesus se manifestou, para cumprir a Lei e cumprir a
justiça exigida por Deus. O erro, entretanto, dessa teoria é que Cristo não
morreu no lugar dos pecadores, mas em favor dos pecadores, pois Sua morte é o
exemplo máximo e mais profundo da justiça de Deus sendo aplicada em Jesus.
O erro, portanto, reside no
fato de que Jesus não é o substituto dos seres humanos, mas o exemplo de
justiça cumprida e de justiça aplicada. O problema disso é minimizar os pecados
dos seres humanos e de colocar o exemplo de Jesus como algo um tipo de
influência moral. Embora o exemplo de Cristo nos motive a viver em santidade,
Seu sacrifício substituiu nossa incapacidade de perfeccionismo moral: “Miserável
homem que eu sou! quem me livrará do corpo desta morte? Graças a Deus, por
Jesus Cristo nosso Senhor!” (Rm 7.24,25).
7.
Teoria da Substituição Penal
Esta é a posição dos
reformadores. A teoria governamental é semelhante no que diz respeito à
exigência da justiça de Deus, mas difere no modo como Jesus morreu. Na
governamental, Cristo morreu em favor dos seres humanos e na substituição
penal, Ele morreu não apenas em favor, mas no lugar dos pecadores. Substituição
penal, como o próprio nome sugere, significa dizer que Jesus substituiu os
pecadores na pena que lhes é devida.
Alguns textos que mostram essa
realidade são: “Aquele que não conheceu pecado, ele o fez pecado por nós; para
que, nele, fôssemos feitos justiça de Deus” (2 Co 5.21). “..o Filho do Homem,
que não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por
muitos” (Mt 20.28). “Mas Deus dá prova do seu amor para conosco, em que, quando
éramos ainda pecadores, Cristo morreu por nós. Logo muito mais, sendo agora
justificados pelo seu sangue, seremos por ele salvos da ira” (Rm 5.8,9)
Considerações
finais
Como pôde ser visto, durante a
história da Igreja, surgiram muitas ideias a respeito do ato sacrificial de Jesus
Cristo. Alguns entenderam que sua morte era apenas um exemplo de alguém que
lutava por um ideal, um martírio consequente de uma ideologia. Outros que Jesus
teria pago a dívida humana ao adversário de Deus, satanás. Outros que a morte
de Jesus seria parte do pagamento a Deus, com alguns entendendo que Jesus pagou
o restante no inferno e outros que Ele terminou de pagar num juízo
investigativo.
Embora tenhamos visto que
existe uma grande quantidade de teorias erradas e de caráter heterodoxo, outros
ensinaram acertadamente que Cristo substituiu o ser humano no Calvário de
maneira suficiente, pagando pelos pecados a Deus. Além das Escrituras apontarem
para a substituição penal na natureza da expiação, existe outra discussão sobre
esse importante obra de Cristo: sua abrangência. De modo geral, os calvinistas
creem que a abrangência da expiação se deu apenas por aqueles que foram eleitos
na eternidade passada. Em contrapartida, os arminianos creem que Cristo morreu
por toda a raça humana. Porém, isso é assunto para outra aula.
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