domingo, 12 de novembro de 2017

A obra de Cristo no Calvário: um breve estudo sobre as principais teorias expiatórias

Este é um estudo sobre a natureza e a abrangência da expiação de Cristo. Não se trata de um artigo científico, mas um breve texto-base para uma lição de Escola Bíblica Dominical. Este assunto (a expiação de Cristo) é muito importante para a igreja e é um tema que já discutido desde que a igreja existe. Ao longo dos dois milênios de cristandade, muitas teorias foram discutidas. Algumas delas com certa coerência e outras perigosas. Algumas ortodoxas e outras completamente heterodoxas.
Por isso, este breve estudo tem importância dupla: em primeiro lugar alinha as posições que foram consideradas corretas e em segundo momento, alerta sobre outras posições que são espúrias. Deste modo, este estudo mostrará a natureza da expiação apresentando as principais teorias que discutiram sobre essa doutrina e se elas possuem alguma coerência com as Escrituras ou não.

1. Teoria do resgate pago a satanás
Esta é uma das mais antigas teorias sobre a expiação de Cristo. Provavelmente seu “inventor” tenha sido Orígenes. De acordo com essa teoria, o anjo caído tinha autoridade (legalidade) para governar e oprimir a humanidade em função do pecado de Adão e da solidariedade da raça. Deste modo, foi necessário que Jesus Cristo viesse ao mundo para que pagasse pelo pecado da humanidade, pois isso dava legalidade ao diabo e a seus anjos. Por meio do sacrifício de Cristo, ele teria pago essa dívida a satanás.
Obviamente que essa teoria não tem respaldo bíblico, visto que Cristo disse a Deus que estava pago: “Então Jesus, depois de ter tomado o vinagre, disse: está consumado. E, inclinando a cabeça, entregou o espírito” (Jo 19.30). A expressão “está consumado” nesse versículo é tetelestai em grego, cujo significado também pode ser “está pago”. De acordo com a parábola que conhecemos como a do “credor incompassivo” (Mt 18.21-35), bem como a oração do “Pai nosso” (Mt 6.9-14)  nossas dívidas são devidas a Deus e não ao diabo.
Além disso, o Apóstolo Paulo disse que “havendo riscado o escrito de dívida que havia contra nós nas suas ordenanças, o qual nos era contrário, [Jesus] removeu-o do meio de nós, cravando-o na cruz; e, tendo despojado os principados e potestades, os exibiu publicamente e deles triunfou na mesma cruz” (Cl 2.14,15). Não faz sentido alguém “despojar”, “exibir” e “triunfar” pagando uma dívida. Pagar a dívida a satanás colocaria Jesus numa posição inferior ao diabo.

2. Teoria Mística
Esta teoria teve com principal defensor, um dos principais teólogos liberais, o alemão Friedereich Schleiermacher. De acordo com essa ideia, Jesus teria encarnado como um ser humano completo em todos os sentidos, inclusive no que diz respeito à predisposição imoral para o pecado, ou seja, o que chamamos de “pecado original”. De acordo com a teoria mística, Jesus venceu as tentações porque foi ajudado pelo Espírito Santo e extirpou a depravação humana na cruz, quando reuniu esta natureza humana a Deus. Em suma, a natureza divina penetrou a natureza humana na cruz, elevando-a ao status divina. O ser humano, portanto, pode ser influenciado de maneira mística pelo conhecimento desta obra de Jesus e se tornar alguém melhor.
Essa teoria está errada por pelo menos 3 razões: primeiro porque considera Jesus como nascido debaixo do efeito do pecado de Adão e possuidor do pecado original (Mt 1.20; Lc 1.35; Mc 2.5,6; Hb 4.15); segundo porque acaba distorcendo a perfeição da união hipostática; terceiro porque considera a mudança no ser humano por meio de uma influência cognitiva, ao invés de uma ação regeneradora do Espírito Santo.

3. Teoria do Exemplo
Foi uma teoria defendida pela grande maioria dos teólogos liberais, mas teve sua origem na época dos socinianos (seguidores do Fausto Socino, um polonês falecido em 1604, o qual acreditava que Jesus era apenas um homem comum, sem qualquer divindade). Atualmente, alguns expoentes de movimentos teológicos sociais (Teologia da Libertação e Teologia da Missão Integral) também seguem alguma ideia modificada dessa teoria.
Uma vez que Jesus era apenas um homem comum, sua morte não teve nenhum impacto sobre a salvação eterna e nem mesmo sobre o pecado. Sua morte é apenas simbólica e inspira as pessoas por seu exemplo de obediência e de desejo de ver uma sociedade melhor. Nesta teoria, o mais importante é a ética, meio pelo qual a sociedade (que não tem nenhuma inclinação ao pecado) pode ser melhor.
Paulo alertou aos colossenses para que eles tivessem cuidado: “...que ninguém vos faça presa sua, por meio de filosofias e vãs sutilezas, segundo a tradição dos homens, segundo os rudimentos do mundo, e não segundo Cristo; porque nele habita corporalmente toda a plenitude da divindade” (Cl 2.8,9). O mais importante nesta frase, entretanto, é que Jesus é afirmado como Deus, algo negado pelos socinianos e pelos liberais.
Além disso, Jesus não foi mero ativista social. Ele veio para redimir o ser humano do maior mal que o afligiu, a saber, o pecado: “Deus enviou o seu Filho ao mundo, não para que julgasse o mundo, mas para que o mundo fosse salvo por ele” (Jo 3.17). Esta teoria subtrai de Jesus sua divindade e faz releituras perigosas de outras doutrinas essenciais do cristianismo, como o pecado e a salvação.

4. Teoria adventista
Os adventistas do sétimo dia defendem a ideia de que no dia 22 de Outubro de 1844 Jesus teria entrado num santuário celeste para terminar o trabalho de expiação iniciado no Calvário. Tudo começou quando Guilherme Miller, um pregador Batista, começou a pregar sobre a vinda de Jesus datando-a para a data supracitada, calculando-a com base nas 2300 tardes e manhãs de Daniel (Dn 8.14). O não cumprimento desse cálculo culminou, no ano seguinte (1845), na expulsão de Miller e de seus seguidores, bem como na organização de um grupo que reunia os Crentes do Segundo Advento.
Ellen G. White alegou ter tido uma visão em 1845 de Jesus entrando num santuário (o santíssimo lugar). De acordo com ela (Spiritual gifts, p. 162), Jesus entrou nesse lugar “em 1844, para fazer uma  expiação  final  para  todos que pudessem ser beneficiados por Sua mediação, e para purificar o santuário.” Ela, portanto, interpretou que a data agendada por Miller se cumpriu com Jesus voltando de maneira invisível e entrando no santuário para completar a obra vicária e deu o nome de “juízo investigativo” a esta doutrina.
Obviamente que tal ensino não é menos pior do que a teoria do exemplo e constitui numa heresia grotesca, pois posiciona o sacrifício de Cristo como algo incompleto. Além disso, tal pensamento é baseado numa “revelação” extra-bíblica obtida por meio de uma experiência pessoal, cujas ideias contradizem aquilo que as Escrituras revelam sobre a natureza da expiação de Cristo.
O autor da epístola aos hebreus declarou que Jesus, “havendo ele mesmo feito a purificação dos pecados, assentou-se à direita da Majestade nas alturas” (Hb 1.3). Ele ainda declara que “por seu próprio sangue, [Jesus] entrou uma vez por todas no santo lugar, havendo obtido uma eterna redenção” (Hb 9.12). Sem contar que, o evangelista conta sobre algumas aparições do Jesus ressurreto, o qual “depois de lhes ter falado, foi recebido no céu, e assentou-se à direita de Deus” (Mc 16.19).
O autor da carta aos hebreus também contrastou os múltiplos sacrifícios oferecidos pelos sacerdotes com o único e suficiente sacrifício de Jesus. De acordo o autor, sua próxima aparição não é para entrar num santuário, mas para se revelar aos crentes que aguardam sua vinda:
“Pois Cristo não entrou num santuário feito por mãos, figura do verdadeiro, mas no próprio céu, para agora comparecer por nós perante a face de Deus; nem também para se oferecer muitas vezes, como o sumo sacerdote de ano em ano entra no santo lugar com sangue alheio; doutra forma, necessário lhe fora padecer muitas vezes desde a fundação do mundo; mas agora, na consumação dos séculos, uma vez por todas se manifestou, para aniquilar o pecado pelo sacrifício de si mesmo. E, como aos homens está ordenado morrerem uma só vez, vindo depois o juízo, assim também Cristo, oferecendo-se uma só vez para levar os pecados de muitos, aparecerá segunda vez, sem pecado, aos que o esperam para salvação” (Hb 9.24-28)

5. Teoria da identificação
Essa não é uma nomenclatura utilizada ainda nas teologias sistemáticas, mas uma proposta minha num artigo intitulado “Cristo morreu espiritualmente?” Trata-se da visão popular entre a maioria dos neopentecostais. Nesta perspectiva, Jesus não teria, semelhantemente à visão dos adventistas, concluído sua obra vicária no calvário. A diferença da visão neopentecostal para a adventista, entretanto, está no tempo. Enquanto para estes Jesus só completou Sua obra em 1844, para aqueles, Jesus completou quando foi ao inferno, sendo castigado pelos pecados da humanidade e se identificando com os seres humanos nesse castigo.
Nessa teoria, Jesus teria descido ao inferno num status de morto espiritualmente para se identificar com o ser humano e sofrer as punições do pecado. Jesus ainda teria tomado algum molho de chaves das mãos do diabo e pregado aos espíritos em prisão uma mensagem salvífica, pois alguns neopentecostais advogam a ideia da “perseverança divina”, isto é, de que Jesus teria deixado uma mensagem para as pessoas que nunca ouviram o Evangelho tivessem uma chance de salvação.
No que diz respeito completude e suficiência do sacrifício de Cristo no calvário, podemos citar sua frase de João 19.30: “Está consumado”. Como já adiantamos na teoria do resgate pago a satanás, a expressão “está consumado” pode significar “está pago”. O tempo verbal dessa passagem (tempo perfeito e modo indicativo) mostra que sua obra está realizada, mas que seus efeitos falam até hoje. A título de comparação podemos citar as expressões de Jesus em Mateus 4.4,6,7: “Está escrito”, que em grego é gegraphtai. A Palavra de Deus como Escritura não continua a ser escrita, já foi terminada, mas seus efeitos continuam até hoje.
Além disso, vale comentar que não existe nenhum versículo bíblico contando que Jesus tomou alguma chave das mãos do diabo. Pelo contrário, há um versículo que afirma sua soberania e supremacia como alguém que possui as chaves: “Não temas; eu sou o primeiro e o último, e o que vivo; fui morto, mas eis aqui estou vivo pelos séculos dos séculos; e tenho as chaves da morte e do hades” (Ap 1.17,18).
Finalmente, segunda chance após a morte é incompatível com o ensino bíblico, pois “aos homens está ordenado morrerem uma só vez, vindo depois o juízo” (Hb 9.27). Deste modo, a ideia de “perseverança divina” é completamente equivocada e ilude as pessoas com uma expectativa irreal.

6. Teoria Governamental
Esta teoria foi defendida pela primeira vez por um jurista holandês chamado Hugo Grotius (1583-1645) e posteriormente por vários remonstrantes e metodistas. Ela acerta quando declara que a Lei de Deus exige justiça, pois no Governo de Deus, foi estabelecido que “a alma que pecar, essa morrerá” (Ez 18.20). O descumprimento da justiça de Deus exige que Ele execute Sua justiça sobre os injustos.
Como Deus poderia ser clemente para com os pecadores uma vez que impôs que o salário do pecado é a morte (Rm 6.23)? Foi para isso que Jesus se manifestou, para cumprir a Lei e cumprir a justiça exigida por Deus. O erro, entretanto, dessa teoria é que Cristo não morreu no lugar dos pecadores, mas em favor dos pecadores, pois Sua morte é o exemplo máximo e mais profundo da justiça de Deus sendo aplicada em Jesus.
O erro, portanto, reside no fato de que Jesus não é o substituto dos seres humanos, mas o exemplo de justiça cumprida e de justiça aplicada. O problema disso é minimizar os pecados dos seres humanos e de colocar o exemplo de Jesus como algo um tipo de influência moral. Embora o exemplo de Cristo nos motive a viver em santidade, Seu sacrifício substituiu nossa incapacidade de perfeccionismo moral: “Miserável homem que eu sou! quem me livrará do corpo desta morte? Graças a Deus, por Jesus Cristo nosso Senhor!” (Rm 7.24,25).

7. Teoria da Substituição Penal
Esta é a posição dos reformadores. A teoria governamental é semelhante no que diz respeito à exigência da justiça de Deus, mas difere no modo como Jesus morreu. Na governamental, Cristo morreu em favor dos seres humanos e na substituição penal, Ele morreu não apenas em favor, mas no lugar dos pecadores. Substituição penal, como o próprio nome sugere, significa dizer que Jesus substituiu os pecadores na pena que lhes é devida.
Alguns textos que mostram essa realidade são: “​Aquele que não conheceu pecado, ele o fez pecado por nós; para que, nele, fôssemos feitos justiça de Deus” (2 Co 5.21). “..o Filho do Homem, que não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por muitos” (Mt 20.28). “Mas Deus dá prova do seu amor para conosco, em que, quando éramos ainda pecadores, Cristo morreu por nós. Logo muito mais, sendo agora justificados pelo seu sangue, seremos por ele salvos da ira” (Rm 5.8,9)

Considerações finais
Como pôde ser visto, durante a história da Igreja, surgiram muitas ideias a respeito do ato sacrificial de Jesus Cristo. Alguns entenderam que sua morte era apenas um exemplo de alguém que lutava por um ideal, um martírio consequente de uma ideologia. Outros que Jesus teria pago a dívida humana ao adversário de Deus, satanás. Outros que a morte de Jesus seria parte do pagamento a Deus, com alguns entendendo que Jesus pagou o restante no inferno e outros que Ele terminou de pagar num juízo investigativo.
Embora tenhamos visto que existe uma grande quantidade de teorias erradas e de caráter heterodoxo, outros ensinaram acertadamente que Cristo substituiu o ser humano no Calvário de maneira suficiente, pagando pelos pecados a Deus. Além das Escrituras apontarem para a substituição penal na natureza da expiação, existe outra discussão sobre esse importante obra de Cristo: sua abrangência. De modo geral, os calvinistas creem que a abrangência da expiação se deu apenas por aqueles que foram eleitos na eternidade passada. Em contrapartida, os arminianos creem que Cristo morreu por toda a raça humana. Porém, isso é assunto para outra aula.

quarta-feira, 11 de janeiro de 2017

O Teísmo Aberto: origens e principais doutrinas

O Teísmo Aberto: origens e principais doutrinas[1]

 

O Teísmo aberto é um pensamento teológico contemporâneo, oriundo da metade do século XX, que entende a idéia de transcendência, imanência e imutabilidade divinas de um modo não convencional à tradição cristã. Trata-se de um sistema teológico cujo conceito de Deus não deve contradizer o pensamento científico. É como se a divindade e seus atributos fossem moldados para caber na caixa científica. Olson e Grenz explicam que o Teísmo Aberto, também chamado de Teologia do Processo, é um caminho que busca equilibrar a transcendência e a imanência divina ao abandonar o conceito de transcendência estática e assumir um novo conceito de transcendência evolucionária similar ao pensamento hegeliano, em que o estado anterior não é abandonado, mas preenchido por um estado subseqüente.[2]
Deus poderia mudar, ou mais propriamente, evoluir de acordo que se relaciona com suas criaturas. Sawyer, por exemplo, define o Teísmo Aberto como “uma teologia filosófica segundo a qual a realidade é um processo que envolve desenvolvimento, não um universo estático de objetos.”[3] Neste sistema, Deus, que é um ser pessoal e que estabelece relacionamentos pessoais, acaba por ser afetado por tais relacionamentos, culminando na possibilidade de mutabilidade. Daí a idéia original de “Teologia do Processo,” pois Deus também está em processo de mutação e crescimento, embora num nível diferente de suas criaturas.
O Teísmo Aberto nasceu com o nome de Teologia do Processo. Duas pessoas foram fundamentais para que esse “novo” entendimento ontológico fosse elaborado. São eles: Pierre Teilhard de Chardin (1881-1955) e Alfred North Whitehead (1861-1947), com sua obra Process and Reality (Processo e Realidade). Chardin entrou para a ordem dos jesuítas aos 18 anos de idade e foi ordenado em 1911. Nesta época ele já havia se graduado em teologia e paleontologia e em função de atuar nesta área obteve contato com muitos arqueólogos, o que despertou nele o interesse pelo evolucionismo, área que ele dedicou boa parte de sua vida.
A visão de Chardin era uma síntese de sua fé pessoal e da ciência evolucionária. King explica que ele tinha uma visão mística do mundo, da humanidade e de Deus, que era descrita por ele mesmo como uma nova maneira de enxergar as coisas e que foi adquirida e formada através de experiência pessoais, grandes feitos intelectuais e profundidade de novas compreensões fundamentadas nas compreensões combinadas entre religião e ciência, expressas através de profunda sabedoria e amor.[4]
Chardin acreditava que a ciência e o cristianismo eram duas faces de uma mesma moeda. Visto que ele fora proibido de lecionar no Institute Catholique em Paris, Chardin passou a atuar mais diretamente nas pesquisas geológicas e paleontológicas e chegou a participar da descoberta dos restos mortais pré-históricos do Homem de Pequim, na China. Adepto, portanto, de uma teoria que contradiz o criacionismo bíblico, Chardin entendia que o evolucionismo ensina para a humanidade uma visão processual de futuro, que consistia numa “megassíntese,” isto é, na união de todos os povos, um tipo de “aldeia global.” Em sua obra The Phenomenon of Man,Chardin apresentou duas possibilidades escatológicas: a primeira era otimista, prevendo que haveria uma redução do mal na terra e a segunda pessimista, de que o mal continuaria a crescer junto com o bem, mas que o final seria inevitavelmente catastrófico.[5]
Essa visão evolucionista também foi empregada em sua teologia. Para Chardin, o que entendemos tradicionalmente como imagem de Deus precisava de uma redefinição urgente e acreditava que as pessoas ainda não haviam encontrado verdadeiramente ao Deus que adoravam por conta dessa definição deficiente. A verdadeira religião, para ele, não poderia ser desenvolvida num isolamento cultural e sim mediante as experiências conjuntas de diferentes tradições religiosas. Para se ter dimensão de como o evolucionismo influenciou completamente sua visão teológica, King nos conta que ele registrou em seu diário no ano de 1950 que “Deus não está morto – Mas, ele muda” e que escreveu numa carta endereçada a um amigo sobre a “transformação (...) do ‘Deus do Evangelho’ no ‘Deus da evolução’ – uma transformação sem deformação.”[6] Essas frases, sem dúvida, refletem a essencialidade da Teologia do Processo.
Apesar dessas visões chardinianas (que tiveram maiores influências no acamicismo católico), o principal expoente do moderno Teísmo Aberto professado por alguns “protestantes” e “evangelicais” foi Alfred Whitehead, que atuou como matemático até o ano de 1924, quando recebeu um convite para lecionar filosofia na universidade de Harvard. Nessa nova missão, Whitehead se propôs em restabelecer a importância da metafísica (ele cria que toda ciência afirma tacitamente algum nível de metafísica) num contexto em que o enfoque era mais científico e antimetafísico.[7]
Na metafísica de Whitehead, a realidade é construída a partir de quatro conceitos absolutos, a saber: 1) A ocasião real; 2) Objetos eternos; 3) Deus; e 4) A criatividade. A ocasião real é algo de natureza efêmera e que passa por mutabilidade e é absorvida pelos pontos seguintes. Os objetos eternos são padrões e qualidades, tais como cores, emoções, prazeres, dores, etc. Deus é uma entidade em meio a inúmeras outras entidades. É alguém que a despeito de antes de toda a criação, é “junto com toda a criação.”[8] Ele (Deus) retém todas as inovações realizadas à medida que o futuro se torna presente e desaparece com o passado. Finalmente, a criatividade, para Whitehead, não é outra coisa existente e sim o princípio de unidade que está por detrás da variedade de entidades reais, bem como a fonte de individualidade dessas entidades que participam do “progresso criativo.”[9]
De qualquer modo, Whitehead tinha uma concepção de Deus completamente fora daquilo que as Escrituras revelam. Ele não é onipotente e tampouco onisciente. No caso da onipotência, Whitehead cria que sua soberania não passava de uma colocação antiquada da igreja, que conferiu atributos à divindade que deveriam ser atribuídos a César, o déspota. Já no que se refere à onisciência, ele negava completamente o sentido clássico de se conhecer o futuro. Se no molinismo Deus conhece todas as possibilidades, mas ao mesmo tempo conhece qual deles será a realidade, para Whitehead, Deus conhece o futuro apenas como uma possibilidade, nunca como uma realidade.[10]
Lewis Ford, um expoente do Teísmo Aberto, explicou que a visão whiteheadiana é ralacional (que inclusive é outro nome para o Teísmo Aberto, Teologia Relacional): “Assim como o mundo deve confiar que Deus determinará o objetivo de seus esforços, do mesmo modo também Deus deve confiar no mundo para alcançar esse objetivo.”[11] Como se pode ver, a divindade ensinada na metafísica de Whitehead está mais para algo semi-divino, assemelhando-se mais a um ser angélico do que ao Deus Todo-Poderoso. Sawyer corrobora com esse ponto e explica que “Whitehead concebia um Deus limitado, que se desenvolvia gradualmente. Sua filosofia enfatizava a natureza atomística “dipolar” da realidade e de Deus, havendo um aspecto primordial (externo) e um aspecto subseqüente (sujeito a mudança e ao desenvolvimento).”[12]
Todavia, quem conduziu o pensamento Whiteheadiano para o campo da teologia, foi o pesquisador Charles Hartshorne (1897-2000). Ele começou a lecionar na Universidade de Chicago no ano de 1928 e trabalhou com afinco com o sistema metafísico de Whitehead, dando, entretanto, atenção especial às implicações teológicas. Essas idéias aplicadas à teologia ganharam a simpatia de outros estudantes e acadêmicos da Universidade de Chicago, dentre os quais podemos destacar Henry Nelson Wieman, Bernard Loomer, Daniel Day Williams, Bernard Meland e John B. Cobb Jr. Este último foi o terceiro maior propagador da teologia do processo, sucedendo seu professor Hartshorne. Ele publicou a obra A Christian Natural Theology Based on the Thought of Alfred North Whitehead (Uma Teologia Natural Cristã Baseada no Pensamento de Alfred North Whitehead) e fundou um periódico para divulgação dos pensamentos da teologia do processo, o Process Studies e o Center for Process Studies localizado em Claremont.[13]
As idéias expostas aqui podem ser vistas em teístas abertos contemporâneos. Rice, por exemplo, explica a visão relacional de Deus da seguinte forma: “o amor é a qualidade mais importante que atribuímos a Deus; e o amor é muito mais do que cuidado e compromisso; ele envolve ser sensível, bem como responsável. (...) o relacionamento de Deus com o mundo se dá num sentido dinâmico, ao invés de estático.”[14] Esse entendimento se estende para o conhecimento de Deus, que deixa de ser onisciente, para também ser dinâmico: “o conhecimento de Deus também é dinâmico ao invés de estático. Ao invés de perceber todo o curso existente da história humana em um único momento, Deus vem a conhecer os eventos assim que eles acontecem. Ele aprende algo a partir do que se sucede.”[15]
Oord, que é um adepto do Teísmo Aberto, confessa que “as concepções sobre Deus por parte da Teologia do Processo estão, freqüentemente, em desacordo com as tradições teológicas reformadas do evangelicalismo (especialmente o calvinismo). Particularmente, as noções de onipotência e onisciência divinas e temporalidade que os teístas do processo advogam se opõem àquilo que a tradição reformada denomina como ortodoxo.”[16] Entretanto, as divergências não são apenas em relação à ortodoxia calvinista, e sim em relação à ortodoxia evangélica como um todo. As Escrituras revelam um Deus que sabe todas as coisas e não uma divindade que vai compreendendo paulatinamente as coisas no decorrer do desenvolvimento da história humana. Esse tipo de ensino está mais para blasfêmia!
Esse mesmo erro teontológico pode ser visto nas palavras de Bowman. Ela afirma que “onipotência e onisciência, aquelas perfeições divinas de poder e conhecimento, nunca significaram simples, abrupta ou ingenuamente um poder para fazer qualquer coisa e para saber qualquer coisa. Ao invés disso, eles identificam o poder perfeito como o poder para fazer qualquer coisa logicamente possível de ser feita (não um quadrado redondo). Conhecimento perfeito, da mesma forma, é o conhecimento de tudo o que possa ser conhecido.”[17] Embora ela fale de um conhecimento que possa ser conhecido, logo mais adiante acaba caindo na negação da onisciência divina ao afirmar que “Deus conhece o futuro como algo potencial (...) mas o conhecimento perfeito da potencialidade não é equivalente ao conhecimento de uma atualidade.”[18] Em outras palavras, Deus até sabe todos os futuros possíveis, como acontece com o conhecimento natural do molinismo, mas Ele não sabe qual deles ocorrerá no Teísmo Aberto. Ele sabe conforme acontece e aprende lições com esses acontecimentos. Clarck Pinnock também defende a mesma idéia do conhecimento de Deus exposta aqui na pessoa de Bowman.[19]
Outra curiosidade é a limitação do poder de Deus. Segundo as Escrituras, o Deus Todo-Poderoso é aquele que é capaz de realizar feitos miraculosos que vão além das leis que Ele mesmo estabeleceu. Paulo declarou que Ele “é poderoso para fazer tudo muito mais abundantemente além daquilo que pedimos ou pensamos” (Ef 3.20). Deus é aquele que fez a terra parar ou diminuir a rotação quando Josué orou (Js 10.12,13); é aquele que fez a sombra do sol retroceder depois das orações de Ezequias e Isaías (2 Rs 20.11). Para que isso acontecesse, o planeta precisou retornar alguns graus em seu movimento de translação da órbita solar; É aquele que tem poder sobre a morte e que ressuscitou várias pessoas. Enfim, qualquer um que assuma os relatos das Escrituras Sagradas como relatos verdadeiros, crê que Deus pode realizar milagres além daquilo que logicamente é possível de ser feito.
O Teísmo Aberto, portanto, trata das questões de soberania e providência divinas, bem como da responsabilidade humana, de uma forma desconexa com as Escrituras. Olson até diz que o Teísmo Aberto é “uma opção evangélica legítima e arminiana.”[20] Contudo, depois de analisar cautelosamente todas essas afirmações sobre a não onisciência e onipotência divinas, não consigo pensar como Olson. Defender que Deus não sabe o futuro imediato e que ele, portanto, está aberto, é o mesmo que dizer que o mundo está parcialmente ao acaso. Não obstante, o Teísmo Aberto é falho na interpretação dos atributos absolutos de Deus, pois uma divindade que tem poder e capacidade cognitiva limitada não deveria nem mesmo ser chamada de divindade.
Se por um lado o molinismo pode ser adotado pelos arminianos, o teísmo aberto deve ser rechaçado como um pensamento herético e heterodoxo. Como tivemos a oportunidade de ver, o Teísmo Aberto não nasceu do arminianismo, embora ele tanha ganhado espaço de maneira mais abrangente por meio de arminianos. Também não podemos chamar o Teísmo Aberto de hiper-arminianismo, uma vez que sua concepção de onisciência afeta diretamente outros pontos como a providência, soberania e presciência, tornando o Deus da Bíblia, num Deus inferior. Neste ponto concordo com o Rev. Heber Campos: no Teísmo Aberto, “Deus fica condicionado às ações livres dos homens para planejar o futuro dos mesmos. A doutrina da soberania divina sobre a história pessoal dos homens fica completamente rejeitada. O Deus apresentado pelos teólogos da abertura de Deus é realmente um Deus diminuído!”[21]








[1] Esse texto está disponível em: COUTO, Vinicius. Em favor do arminianismo-wesleyano: um estudo bíblico, teológico e exegético de sua relevância na contemporaneidade. São Paulo: Reflexão, 2016, pp. 266-273.
[2] GRENZ, Stanley; OLSON, Roger. A Teologia do Século 20 e os anos críticos do século 21: Deus e o mundo numa era líquida. São Paulo: Cultura Cristã, 2013, p. 155.
[3] SAWYER, M. James. Uma Introdução à Teologia: das questões preliminares, da vocação e do labor teológico. São Paulo: Vida, 2009, p. 634.
[4] KING, Ursula. Teilhard de Chardin and Eastern Religions: Spirituality and Mysticism in an Evolutionary World. New York: Paulist Press, 2011, p. 11.
[5] GRENZ, Stanley; OLSON, Roger. Op. Cit., pp. 156-158.
[6] KING, Ursula. Op. Cit., pp. 183,184.
[7] BOWMAN, Donna; MACDANIEL, Jay (Orgs.). Handbook of Process Theology. Saint Louis: Chalice Press, 2006, p. 4.
[8] WHITEHEAD Apud GRENZ, Stanley; OLSON, Roger. Op. Cit., p. 401.
[9] Ibid, pp. 161,162.
[10] Ibid, p. 162.
[11] FORD, Lewis. Divine Persuasion and the Triumph of Good. In: BROWN, Delwin; JAMES JR, Ralph; REEVES, Gene (Orgs.). Process Philosophy and Christian Thought. Indianapolis: Bobbs-Merril, 1971, p. 298.
[12] SAWYER, M. James. Op, Cit., p. 594.
[13] BOWMAN, Donna; MACDANIEL, Jay. Op. Cit., pp. 4,5.
[14] RICE, Richard. Biblical Support for a New Perspective. In: PINNOCK, Clarck; RICE, Richard; SANDERS, John; HASKER, William; BASINGER, David. The Openness of God: a biblical challenge to the traditional understanding of God. Downers Grove: InterVarsity Press, 1994, p. 15.
[15] Ibid, p. 16.
[16] OORD, Thomas Jay. Evangelical Theologies. In: BOWMAN, Donna; MACDANIEL, Jay. Op. Cit., p. 254.
[17] BOWMAN, Donna. God for Us. In: BOWMAN, Donna; MACDANIEL, Jay. Op. Cit., p. 23.
[18] Ibid, p. 24.
[19] Cf. PINNOCK, Clarck. Systematic Theology. In: PINNOCK, Clarck; RICE, Richard; SANDERS, John; HASKER, William; BASINGER, David. Op. Cit., p. 121.
[20] OLSON, Roger. Teologia Arminiana: Mitos e Realidades, p. 256.
[21] CAMPOS, Heber. O Teísmo Aberto: um ensaio introdutório. Fides Reformata, IX, n° 2, 2004, p. 44. Campos faz alguns equívocos nesse artigo ao associar o Teísmo Aberto com o Arminianismo. Ele até diz, acertadamente que, nem todo arminiano é teísta aberto, mas que todo teísta aberto é arminiano, entretanto, relata que o teísmo aberto nasceu nos círculos do arminianismo, o que já vimos neste capítulo ser um erro histórico-teológico. Contudo, a opinião dele citada aqui é a mesma opinião que nutro sobre o Teísmo Aberto. Não consigo enxergar esse ponto de vista como uma opção evangélica legítima, senão como um pensamento explicitamente herético.

quarta-feira, 9 de novembro de 2016

Amei Jacó e odiei Esaú: o que isso significa?

Amei Jacó e odiei Esaú: o que isso significa?[1]

Embora Deus seja justo e fogo consumidor, esses atributos são muito diferentes de ódio. É preciso diferenciarmos a ira de Deus de ódio. Ira é um sentimento natural, algo espontâneo, uma espécie de mecanismo emocional para externar nossa indignação ou insatisfação com algo. A ira não é pecado, mas existe limite para a mesma. Se ela sair do controle pode fazer com que cometamos atos impensados e fatais. Podemos citar dois exemplos bíblicos sobre isso: o primeiro é o caso de Jesus com os cambistas que ficavam no templo. Nosso Mestre ficou tão indignado que derrubou mesas, cadeiras e expulsou os negociantes que ali estavam (Mt 21.12,13). O segundo exemplo consta em Efésios 4.26: “Irai-vos, e não pequeis; não se ponha o sol sobre a vossa ira.” Como se pode ver, irar não é pecado, mas existe um limite que deve ser controlado por nossa inteligência emocional, isto é, nosso domínio-próprio (Gl 5.22,23).
Já o ódio é algo completamente diferente. Trata-se de um sentimento que ultrapassou o limite da ira e faz com que o indivíduo fique nutrindo maus desejos contra outrem. O ódio faz com que a pessoa fique planejando alguma vingança, ou que fique maquinando o mal contra terceiros. O ódio deixa de ser natural e passa a ser uma forma de tramar conscientemente o mal. Por isso, Deus não pode odiar, pois isso faria com que Ele tomasse decisões malignas e pecaminosas. As Escrituras dizem claramente que Deus amou o mundo ao invés de “odiou o mundo.”
É óbvio que existem inúmeras referências bíblicas de Deus odiando algo ou alguém, mas o sentido desse ódio tem a ver com indignação, com o repúdio de certas práticas, com detestar a iniquidade e com o ficar aborrecido com aquilo que é pecado. O verbo odiar em hebraico é sānê e ocorre 147 vezes no Antigo Testamento com suas derivações. Citando alguns exemplos, podemos abordar Malaquias 2.16 onde diz que Deus odeia o divórcio. Odiar o divórcio tem sentido de repudiar esse ato e não de nutrir um sentimento vingativo contra tal ato. O mesmo acontece em Provérbios 8.13, onde é dito que a soberba, a arrogância, o mau caminho e a boca perversa são odiados. Em Amós 6.8 Deus odeia os palácios de Jacó e sua soberba. Jeremias 44.4 mostra que Deus odeia a idolatria.
Finalmente, Malaquias 1.3 diz que Deus odiou a Esaú. Será que Deus odiou a Esaú no sentido de nutrir uma ira compulsiva, fora dos limites? Um ódio que leva alguém a maquinar uma vingança, conforme descrito mais acima? Certamente que o sentido de “odiar” em Malaquias se refere a Deus estar aborrecido com a desobediência dos Edomitas e não com Esaú propriamente dito. As evidências de que Deus não está falando do indivíduo Esaú são inúmeras. Em primeiro lugar, o contexto imediato: no versículo 1 é dito que a palavra é dirigida a Israel (nação). No verso 2 os israelitas questionavam quando alguém dizia que Deus os ama e para dar a constatação desse amor o Senhor fala metaforicamente que amou a nação de Israel, representada pelo patriarca Jacó, e aborreceu-se de um povo que saiu da mesma descendência abraâmica, a saber, os edomitas (representada por Esaú). De onde vem a causa desse repúdio? Explico nas linhas abaixo:
Os hebreus passaram maus bocados no Egito enquanto serviram como escravos por 430 anos. Após serem libertos, seguiam rumo à terra prometida guiados por Moisés. Para chegarem ao destino, precisavam passar pela terra de Edom e Moisés enviou mensageiros solicitando passagem. Em sua mensagem, Moisés até apelou para o argumento fraternal, dizendo: “Assim diz teu irmão Israel: (...) Deixa-nos passar pela tua terra” (Nm 20.14,17). Moisés promete que os hebreus não comeriam nada da terra de Edom e que nem mesmo a água deles beberiam.
Mas, os descendentes de Edom (Esaú) não foram solícitos quando o povo hebreu precisou atravessar a terra deles. Pelo contrário, a resposta do rei dos edomitas foi que eles não podiam passar por lá, pois se o fizessem seriam atacados (Nm 20.18). Moisés até tentou contra-argumentar, pedindo mais uma vez com a promessa de que se alguém descumprisse o acordo e comesse ou bebesse, que os hebreus dariam seu gado como compensação (Nm 20.19). Mas Edom foi incisivo em sua resposta: “Não passarás!” Além da resposta áspera, eles saíram “ao encontro [dos hebreus] com muita gente e com mão forte” (v.20). Mesmo com tal ato de covardia, Deus prescreve que os hebreus não fizessem o mesmo. Ao invés disso, Ele disse em ocasião posterior: “Não rejeitem o edomita, pois ele é seu irmão.” (Dt 23.7).
Deus abomina esse tipo de tratamento, afinal, “Quem sabe que deve fazer o bem e não o faz, comete pecado” (Tg 4.17). Os edomitas foram insensíveis e bárbaros, cometeram terrível crueldade, mas Deus, em sua justiça, puniria Edom fazendo-os servos de Israel. Essa profecia foi feita pela primeira vez enquanto Rebeca estava grávida: “Duas nações estão em seu ventre, já desde as suas entranhas dois povos se separarão; um deles será mais forte que o outro, mas o mais velho servirá ao mais novo” (Gn 25.23 – grifos meus).
A segunda vez em que essa profecia foi dita ocorreu quando Balaão empreendeu um esforço inútil lançando feitiços contra Israel. Deus revela que “Uma estrela surgirá de Jacó; um cetro se levantará de Israel. Ele esmagará as frontes de Moabe e o crânio de todos os descendentes de Sete. Edom será dominado; Seir, seu inimigo, também será dominado, mas Israel se fortalecerá.” (Nm 24.17,18).
As duas profecias se cumprem nos dias de Davi, quando seu exército travou uma batalha sangrenta e matou dezoito mil soldados de Edom no Vale do Sal “sujeitando todos os edomitas a Davi” (1 Cr 18.13; 2 Sm 8.14). Paulo chega a citar a primeira profecia em Romanos 9.12. Os calvinistas gostam de Romanos 9 e com toda freqüência alegam que este capítulo trata da eleição individual, mas o texto claramente fala acerca de nações e não indivíduos. Em outras palavras, trata da eleição corporativa e não individual. Um das evidências disso é o que o versículo que destaquei diz: “O maior servirá o menor.” (Rm 9.12). Sabemos que o maior (Esaú) nunca serviu ao menor (Jacó) enquanto viveu. A profecia dizia respeito às nações, conforme vimos neste parágrafo, quando os edomitas foram sujeitos a Israel.
Outro texto prova de que os edomitas se tornaram servos de Israel encontra-se nas passagens paralelas de 2 Rs 8.20 e 2 Cr 21.8: “Nos dias de Jeorão, os edomitas rebelaram-se contra o domínio de Judá, proclamando seu próprio rei.” Quando os judeus enfrentavam o cativeiro babilônico, os edomitas se deleitavam nesse momento trágico e desejavam que eles fossem completamente destruído. Esse episódio é dito no Salmo 137.7: “Lembra-te, Senhor, contra os edomitas, do dia de Jerusalém, porque eles diziam: Arrasai-a, arrasai-a até os seus alicerces.” Em função dessa rebelião, as Escrituras apresentam profecias imprecatórias posteriores contra Edom. São elas:

Assim diz o Senhor Deus: Pois que Edom se houve vingativamente para com a casa de Judá, e se fez culpadíssimo, vingando-se deles. 13 portanto assim diz o Senhor Deus: Também estenderei a minha mão contra Edom, e arrancarei dele homens e animais; e o tornarei em deserto desde Temã; e cairão à espada até Dedã. E exercerei a minha vingança sobre Edom, pela mão do meu povo de Israel; e farão em Edom segundo a minha ira e segundo o meu furor; e conhecerão a minha vingança, diz o Senhor Deus. (Ez 25.12-14)
O Egito se tornará uma desolação, e Edom se fará um deserto assolado, por causa da violência que fizeram aos filhos de Judá, em cuja terra derramaram sangue inocente. (Joel 3.19)
Assim diz o Senhor: Por três transgressões de Tiro, sim, por quatro, não retirarei o castigo; porque entregaram todos os cativos a Edom, e não se lembraram da aliança dos irmãos. (...) Assim diz o Senhor: Por três transgressões de Edom, sim, por quatro, não retirarei o castigo; porque perseguiu a seu irmão à espada, e baniu toda a compaixão; e a sua ira despedaçou eternamente, e conservou a sua indignação para sempre (Am 1.9,11)

Para concluir essa seção, reforçamos que a idéia de que Deus ame alguns para a salvação e odeie outros para a perdição não coaduna com as Escrituras, afinal, elas revelam que Deus não tem prazer na morte do ímpio (Ez 33.11). A missão de Cristo reforça que Ele veio salvar o que se tinha perdido (Mt 18.11; Lc 19.10) e que Deus enviou o seu Filho ao mundo, não para que condenasse o mundo, mas para que o mundo fosse salvo por ele (Jo 3.17).
Em seu sermão Livre Graça, Wesley dizia: “nenhuma passagem bíblica diz que Deus não é amor.”[2] Armínio enfatiza isso em seus debates com William Perkins e Gomaro, afirmando: “Nenhuma criatura racional foi criada por Deus com essa intenção, para que sejam condenadas.”[3]  O remonstrante Simão Episcópio reforçou a mesma idéia quando declarou que Deus não pode desejar causar o mal porque “Ele é o bem supremo, tanto em si mesmo como também para suas criaturas.”[4]


Notas


[1] Este texto é um excerto da obra: COUTO, Vinicius. Em favor do Arminianismo-Wesleyano: um estudo bíblico, teológico e exegético de sua relevância na contemporaneidade. São Paulo: Reflexão, 2016.
[2] WESLEY, John. Op. Cit., Livre Graça.
[3]ARMÍNIO Apud OLSON, Roger. Op. Cit., p. 134
[4] EPISCOPIUS, Simon. Confession of Faith of those Called Arminians. Londres: Heart & Bible, 1684, pp.84,85.

domingo, 30 de outubro de 2016

NÃO SOU ARMINIANO E NEM CALVINISTA, SOU BÍBLICO

NÃO SOU ARMINIANO E NEM CALVINISTA, SOU BÍBLICO
Vinicius Couto[1]

Resumo
A teologia arminiana é, ainda, mal compreendida no Brasil. Não bastasse a má compreensão em função da falta de acesso bibliográfico, da desonestidade intelectual, da ojeriza ao estudo teológico formal e da teologia popular, existe, ainda, uma visão falaciosa de que se identificar com determinado sistema soteriológico torna a pessoa menos bíblica ou até mesmo seguidora de homens. Isto posto, o presente artigo se preocupa em elucidar as questões que envolvem o assunto. A alegação de que ser arminiano ou calvinista é deixar de ser bíblico para lançar mão de interpretações humanas é uma falácia lógica. Ademais, o presente artigo também quer demonstrar que, mesmo o arminianismo e o calvinismo sendo bíblicos, não existe bipolaridade soteriológica. Isto é, a doutrina da salvação não está limitada a esses dois pólos. Sendo assim, apresentaremos algumas das posições que estão em conformidade com a ortodoxia evangélica, bem como as que não estão em harmonia.
Palavras-chave: Arminianismo – Calvinismo – Bíblico – Falácia lógica

Abstract
Arminian theology is still misunderstood in Brazil. The lack of bibliographic access, the intellectual dishonesty, the aversion to formal theological study and the popular theology are some of the reasons for this misunderstood. Beyond them, there is also a fallacious view that identify with certain soteriological system makes the people less biblical even follower of men. That said, this article is concerned with elucidating the issues surrounding it. The claim that an Arminian or Calvinist is no longer biblical to resort to human interpretations is a logical fallacy. In addition, this article want to demonstrate that even Arminianism and Calvinism is biblical, and there is not salvific bipolarity. This is, the doctrine of salvation is not limited to these two poles. Thus, we present some of the positions that are in line with evangelical orthodoxy and those that are not in harmony.
Keywords: Arminianism - Calvinism - Biblical - Logical Fallacy

Introdução
Atualmente existem muitas pessoas que hesitam em se posicionar soteriologicamente. A principal frase que temos ouvido no evangelicalismo brasileiro sobre essa hesitação é que, “não sou arminiano e nem calvinista, sou bíblico.” O presente artigo se preocupa em mostrar que essa frase constitui uma falácia lógica e apresentar as razões pelas quais ela está equivocada. Para tanto, daremos uma olhada no conceito de falácia lógica e mostraremos que o texto bíblico usado para defender essa ideia, também acaba recaindo numa falácia, pois é utilizado fora de seu sentido original e fora de seu contexto.
O artigo ainda apresenta que ser arminiano ou calvinista não implica em seguir integralmente as ideias dos teólogos que levam seus nomes, a saber, Jacó Armínio e João Calvino, mas sim na identificação da interpretação envolvida na relação criação – queda – redenção. Para essa análise, serão abordadas algumas doutrinas rudimentares da fé cristã, bem como um movimento hegemônico do evangelicalismo mundial, o pentecostalismo. A ideia é mostrar que não é possível fugir dos rótulos e que esses rótulos teológicos não fazem com que quem adere a eles seja seguidor de homens, ou menos bíblico. Finalmente, nossa preocupação é mostrar que a soteriologia não está limitada à bipolaridade, isto é, apenas aos círculos arminiano e calvinista, pois existem outras opções.

A posição do autor do artigo
Antes de mais nada, quero deixar clara a minha posição soteriológica. Sou arminiano-wesleyano. Tenho duas obras publicadas pela editora Reflexão que tratam do assunto. A primeira se chama Introdução ao arminianismo-wesleyano. Ela foi publicada em 2014 e trata-se de um estudo comparativo entre o pensamento arminiano e calvinista. Não é um livro de apologética polemista. A preocupação não é refutar textos calvinistas, embora em alguns momentos isso acabe sendo necessário, principalmente porque os nossos irmãos calvinistas acabam dizendo inverdades sobre o arminianismo, rotulando-o de pelagianismo ou de semi-pelagianismo.[2]
A segunda obra acabou de ser lançada (Setembro de 2016). Seu título é Em favor do arminianismo-wesleyano: um estudo bíblico, teológico e exegético de sua relevância na contemporaneidade. Trata-se de uma obra mais completa do que a primeira, que fechou com 110 páginas e visa dar apenas o alicerce dos rudimentos do pensamento armínio-wesleyano. A última obra, entretanto, procura fazer uma viagem mais profunda. Ela é dividida em oito capítulos. No primeiro temos uma apresentação histórica. O objetivo é mostrar um pouco do que os pais da igreja pensaram sobre a questão de livre arbítrio. Concluímos que os pais da igreja não foram nem arminianos e nem calvinistas (o anacronismo é necessário aqui), mas é visível o desenvolvimento teológico no meio dos pais da igreja sobre depravação e graça. Ainda na parte histórica, temos uma breve biografia de Jacó Armínio e de John Wesley, dois dos principais expoentes do pensamento que carrega o nome de ambos.
Os cinco capítulos seguintes se encarregam de trabalhar os axiomas arminianos (depravação total, eleição condicional, graça preveniente, expiação ilimitada e perseverança dos santos), com maior ênfase no desdobramento wesleyano. No capítulo sobre depravação total, mostramos as bases bíblicas e as fundamentações teológicas do assunto. Algo muito importante sobre esse ponto é a compreensão da criação do homem à imagem de Deus e o entendimento da corrupção dessa imagem sofrida com a queda. Essa compreensão é basilar para compreender a doutrina da perfeição cristã ou da inteira santificação wesleyana. O capítulo que versa sobre a eleição leva em consideração os aspectos condicional, corporativo, presciente, predestinista e amoroso da eleição. Há vasta exegese nesse capítulo, principalmente sobre Romanos 9.
No capítulo sobre a graça preveniente, há uma explicação, em primeiro momento, sobre o que é graça, e que a adjetivação preveniente é apenas uma forma de apresentar uma das ações dessa graça, afinal, graça é uma só, mas possui operações circunstanciais peculiares, como a graça comum, por exemplo. Sendo assim, o livro apresenta a ordo salutis armínio-wesleyana numa perspectiva dos estágios da graça (graça preveniente, graça convencedora, graça justificadora e graça santificadora). Na sequencia, abordamos a expiação. Para entendermos sua extensão, antes de mais nada, explicamos o que significa a palavra “expiação” e quais são as outras palavras correlatas do novo e do antigo testamento. Abordamos, ainda, a exegese dos textos bíblicos que falam sobre a extensão dessa expiação e tratamos desse axioma como sendo um dos principais pontos fracos da soteriologia calvinista, tanto que ele divide a opinião dos teólogos calvinistas para uma segunda linha, o calvinismo de quatro pontos, também conhecido como amiraldismo. Nesse ínterim, defendemos a posição de que Armínio tenha sido calvinista e que após a controvérsia com Koornhert é que a posição do professor holandês muda. Esse argumento, inclusive, fortalece a ideia do calcanhar de Aquiles. Além de tudo isso, ainda levamos em consideração a problematização dos pecados pagos duas vezes.
O último axioma a ser tratado é sobre a questão da perseverança dos santos, ou a segurança da salvação. Mostramos, em primeiro lugar, a posição de Jacó Armínio e a controvérsia que envolve esse caso. Embora haja pensadores que sejam favoráveis a uma defesa da possibilidade de apostasia em Armínio (Keith Stanglin, Robert Picirilli, Wellington Mariano, etc), estou ao lado de Roger Olson nesse quesito e entendo que ele não se posicionou nem a favor e nem contra a possibilidade de apostasia, manifestando-se de maneira ambígua.[3] Uma das contraprovas disso é a evolução do pensamento dos remonstrantes, que em 1610 publicam, em um de seus artigos, que essa questão (da possibilidade de apostasia) deveria ser melhor estudada. Oito anos mais tarde, no mesmo ano do Sínodo de Dort, é que eles (os remonstrantes) se posicionam a favor da possibilidade. As ideias dos remonstrantes de 1618 estão escritas no nosso anexo dois do livro. De qualquer forma, o capítulo ainda se preocupa bastante em trazer textos bíblicos à tona e em fazer a exegese dos mesmos.
A obra finda com mais dois capítulos (sétimo e oitavo) e dois anexos. O sétimo capítulo versa sobre a questão da soberania de Deus. O arminianismo não nega essa soberania, apenas entende, diferentemente do calvinismo, que Deus estar no controle de tudo, não é sinônimo de controlar meticulosamente todas as coisas. Partindo desse pressuposto, analisamos a correlação da soberania divina com o livre-arbítrio, com a responsabilidade humana e com a providência divina. Não obstante, sabemos que existem outras tentativas de correlacionar esses itens e, por isso, apresentamos também na obra. São eles: o compatibilismo, o molinismo e o teísmo aberto, sendo que apresento este como uma opção heterodoxa.
O último capítulo se preocupa em mostrar que a teologia armínio-wesleyana é mais ampla e pode ser mais relevante se trabalharmos com ela de maneira mais holística. Existe a possibilidade de trabalharmos uma cosmovisão e dialogarmos, a partir da esfera armínio-wesleyana, com questões da sociedade, tais como saúde, ecologia, ética, justiça social, sexualidade, educação e vários outros temas. O ponto chave disso é o entendimento da restauração da imagem de Deus. O primeiro anexo segue para reforçar essa ideia e apresentamos as perspectivas existentes sobre o relacionamento entre o cristão e a cultura. Wesley, ao lado de Agostinho, Calvino e Kuyper, entende que a igreja é uma agente de transformação. Sendo assim, podemos trabalhar nossos alicerces teológicos e buscar produzir uma teologia que vise maior relevância no contexto contemporâneo.

Desconstruindo a falácia lógica
Antes de prosseguirmos, é importante explicar o significado da expressão “falácia lógica.” Copi explica que falácia é “uma forma de raciocínio que parece correto, mas que, quando examinada cuidadosamente, não o é.”[4] Trata-se de uma ideia aparentemente bem construída, com fundamentações e delineações. Entretanto, algo de errado está inserido em meio ao raciocínio ou à conclusão. A análise dos postulados, das premissas, das evidências, fundamentações e até mesmo da dedução pode desconstruir a ideia que aparenta ter veracidade.
Lógica, por sua vez, é algo que remonta à Grécia Antiga. Cunha e Machado explicam que a lógica tem origem com Aristóteles, entre os séculos IV e V a.C., além de ser usada pelos filósofos a fim de analisar quais argumentos eram bons e quais eram ruins e, assim, persuadir o outro lado a mudar de ideia.[5] Partindo desse pressuposto analítico, a lógica passou a ser “um instrumento para raciocinar e para preservar a consistência.”[6] Em contrapartida, raciocinar é o ato de se ocupar com “o processo de compreender, revisar ou reforçar suas crenças.”[7]
A lógica, portanto, é a ferramenta que usamos para buscar a compreensão, a revisão ou o reforço de nossas ideias a fim de verificar se há ou não consistência em alguma premissa. Essa verificação pode ser realizada através da dedução (conclusões obtidas através de premissas), indução (conclusões que podem ir além das premissas), teoria de modelos (comparações com modelos hipotéticos) e metateoria (são as provas a respeito das provas).[8]
De uma forma mais simples, a falácia lógica nada mais é do que uma conclusão que foi obtida através da verificação dedutiva, indutiva, comparativa hipotética e/ou metateórica a respeito de alguma ideia ou crença. A conclusão parece estar correta, mas quando é examinada com mais cautela, pode-se perceber seus erros e fraquezas. Champlin e Bentes explicam que a falácia lógica ignora os fatores condicionadores e confunde-os com aquilo que é essencial.[9] É o caso da afirmação “não sou arminiano e nem calvinista, sou bíblico.” Num primeiro momento ela transparece piedade, obediência à Palavra de Deus e um retorno ao princípio reformado Sola Scriptura. Entretanto, ela não passa de um equívoco sobre o que é ser arminiano ou calvinista e também do que é ser bíblico.
A primeira questão a ser analisada é: as soteriologias arminiana e calvinista não são bíblicas? A pergunta nasce da própria conclusão da afirmação de que não sou nem um nem outro, “sou bíblico.” Essa afirmativa já aponta que os dois sistemas em questão não são bíblicos e acaba assumindo uma postura de arrogância. Mas, o que é ser bíblico? Algo que muitos confundem é achar que para ser bíblico é preciso haver uma conformidade literal com as Escrituras no uso de terminologias e nomenclaturas. Essa postura não é “bíblica” e sim “biblicista.” Champlin e Bentes explicam que biblicismo “é o nome que se dá à insistência de usar a Bíblia para solucionar todos os problemas teológicos, morais e filosóficos, ou, pelo menos, o uso da Bíblia para determinar o valor da verdade que há nessas questões.”[10] Desta forma, a frase mais adequada seria: “não sou arminiano e nem calvinista e sim biblicista.”
Se o biblicismo fosse verdadeiro, então termos muito comuns nas homilias cristãs deveriam ser anatematizadas, tais como Trindade, pecado original, onipotência, onipresença, onisciência, providência, graça comum, etc. E até mesmo questões morais e jurídicas, tais como masturbação, suicídio, legítima defesa, roubo e furto, etc. A liturgia cristã também deveria ser totalmente revisada, afinal, instrumentos como baterias, guitarras, contrabaixos e outros não se encontram nas Escrituras. O púlpito não é algo usado pelos primeiros cristãos, aparelhagens de som, microfones e até mesmo data-shows deveriam ser eliminados dos cultos, pois não estão nas orientações cúlticas do novo testamento. Outrossim, haveria um enorme problema quanto à não proibição do uso de drogas, visto que não há nenhuma referência bíblica a esse respeito.
Ser bíblico, portanto, não é usar literalmente as expressões oriundas da Bíblia e sim estar em harmonia com os ensinos dela. Embora a palavra Trindade não ocorra nas Escrituras, seu significado está presente em todo o livro sagrado. O mesmo ocorre com as expressões teológicas usadas no parágrafo anterior, bem como os termos de cunho moral e jurídico e com as questões litúrgicas. Bíblico, conforme qualquer dicionário da língua portuguesa, significa algo proveniente da Bíblia ou relativo a ela.
Diante disso, as soteriologias arminiana e calvinista não seriam bíblicas? A resposta é que elas são, sim, bíblicas. Elas se preocupam em trabalhar a criação, a queda e a redenção, a partir daquilo que as Escrituras revelam. No primeiro ponto, ambas entendem que Deus criou a terra e as demais coisas como boas. Ademais, criou o homem, corolário da criação, como bom também. Todavia, a queda afetou a imagem de Deus na humanidade e corrompeu-o totalmente. A essa corrupção chamamos de depravação total, e é um axioma convergente em ambas as teologias. É claro que existem diferenças mínimas na extensão dessa corrupção nos dois sistemas, mas ambos se baseiam nas Escrituras para explicar o nível de corruptibilidade.
Outra diferença entre ambos os sistemas reside no modus operandi da redenção. Visto que após a queda o ser humano tornou-se incapaz de buscar ao Criador, é necessário que uma ação externa atraia e ilumine tal pecador. Esta ação é chamada em ambos os sistemas de graça. Daqui em diante é que ocorrem as divergências da mecânica da salvação nos dois sistemas. Para o arminianismo, essa graça pode ser resistida até o fim da vida, incorrendo, neste caso, na condenação eterna do mesmo. Já para o calvinismo, a graça pode ser resistida temporariamente, pois se tal indivíduo é um dos eleitos de Deus, então no momento em que Deus assim decidiu, a pessoa não poderá resisti-la, pois será regenerado por Deus para que, posteriormente se arrependa e creia.
Ao contrário de muitos irmãos arminianos, não creio que o calvinismo seja uma heresia. Entendo que existam erros doutrinários e eisegeses[11] em suas interpretações do modelo criação – queda – redenção. Entendo que o calvinismo é uma das interpretações soteriológicas dentro do pensamento secundário da doutrina da salvação.
Em sua obra História das controvérsias da teologia cristã, o Dr. Roger Olson propõe uma abordagem mediadora. Trata-se de uma superação das diferenças desnecessárias e desastrosas entre perspectivas e interpretações doutrinárias. Isso é algo completamente inerente ao debate soteriológico arminianismo x calvinismo. A abordagem mediadora é um esforço para buscar a unidade da fé e uma base comum partilhada por diferentes grupos cristãos. Por isso, ele pergunta: “todos os cristãos deveriam partilhar de certas convicções? Existe, por acaso, um conjunto doutrinário básico que define o cristianismo autêntico em termos de conteúdo? Ou será que qualquer pessoa pode declarar-se autenticamente cristã e, não obstante, crer no que sua mente ou vontade consideram aceitável?”[12]
Uma maneira de chegarmos a uma visão mediadora é entendendo que a teologia cristã possui dois conjuntos de doutrinas, as primárias e as secundárias. Estas podem ser relativizadas (monergismo x sinergismo; teorias escatológicas, etc) e aquelas são as que mantêm unidade e que possuem unanimidade.[13] É preciso entender que, ser arminiano ou calvinista não se trata de seguir na íntegra, os pensamentos de Armínio e Calvino. Trata-se, na verdade, de uma identificação com pontos-chave do sistema soteriológico.[14] O arminianismo (e, obviamente, o calvinismo), embora busque ser bíblico, não é um sistema inerrante e infalível, mas é um conjunto de interpretações acerca da criação – queda – redenção.
A boa teologia deve nos conduzir ao reconhecimento daquele que é adorado. Nossa postura deve ser de reverência, temor e dedicação diante de Deus. O estudo teológico não é um fim em si mesmo, mas deve aprimorar nossa relação com o Altíssimo, caso contrário não passará de mero conhecimento intelectual. Martin Lloyd-Jones foi feliz em seu comentário: “o grande perigo é tornar a teologia um tema abstrato, teórico, acadêmico. Ela jamais pode ser isso, porque é conhecimento de Deus".[15] Desta forma, o conhecimento jamais deve ser objeto de arrogância, soberba, vaidade ou orgulho. Paulo disse que, “se alguém cuida saber alguma coisa, ainda não sabe como convém saber” (1 Co 8.2). Precisamos assumir uma postura humilde e jamais de donos da verdade.

Um arminiano não é um seguidor de Armínio
Normalmente, as pessoas que encontram dificuldade em assumir um posicionamento teológico na área de soteriologia, alegam que não seguem a homens e sim a Jesus Cristo. Uma das principais fundamentações para esse posicionamento de repúdio relacionado ao arminianismo e/ou ao calvinismo é o texto paulino de 1 Coríntios 1.11-13: “Meus irmãos, fui informado por alguns da casa de Cloe de que há divisões entre vocês. Com isso quero dizer que cada um de vocês afirma: ‘Eu sou de Paulo’; ‘eu de Apolo’; ‘eu de Pedro’; e ‘eu de Cristo’. Acaso Cristo está dividido? Foi Paulo crucificado em favor de vocês? Foram vocês batizados em nome de Paulo?”
Essa referência bíblica não serve para defender a falácia lógica tratada no presente artigo. Vejamos o porquê: Paulo começa a epístola dizendo que na comunidade de Corinto havia todos os dons espirituais (1 Co 1.7). Esses dons estão relatados na mesma epístola no capítulo 12. Entretanto, essa comunidade não podia ser chamada de espiritual e sim de carnal, pois havia divisão nela. Uns preferiam as pregações de Paulo, outros preferiam as mensagens de Apolo e havia um terceiro grupo que se identificava mais com Pedro. Mas, havia um quarto grupo. Este grupo pode parecer mais piedoso que os demais e, aparentemente, eles eram mais cristocêntricos que os demais, porém, todos são tratados como imaturos:

Irmãos, não lhes pude falar como a espirituais, mas como a carnais, como a crianças em Cristo. Dei-lhes leite, e não alimento sólido, pois vocês não estavam em condições de recebê-lo. De fato, vocês ainda não estão em condições, porque ainda são carnais. Porque, visto que há inveja e divisão entre vocês, não estão sendo carnais e agindo como mundanos? Pois quando alguém diz: "Eu sou de Paulo", e outro: "Eu sou de Apolo", não estão sendo mundanos? Afinal de contas, quem é Apolo? Quem é Paulo? Apenas servos por meio dos quais vocês vieram a crer, conforme o ministério que o Senhor atribuiu a cada um. Eu plantei, Apolo regou, mas Deus é quem fazia crescer. (1 Co 3.1-6)

Embora o quarto grupo pareça ser cristocêntrico, na verdade eles eram tão problemáticos quanto os anteriores. Isso se dava porque este grupo não se submetia a nenhuma autoridade. Eles não são seguidores de homens, portanto, a liderança de Paulo, de Pedro, de Apolo, ou de qualquer outra pessoa não servia. Eles se submetiam apenas a Jesus. Morris explica que este grupo, provavelmente, tinha o seguinte lema: “Pertencemos a Cristo, e a nenhum mestre.”[16]
Esse discurso, aparentemente piedoso, não passava de uma falácia. A insubmissão não encontra lugar no pensamento paulino: “Agora lhes pedimos, irmãos, que tenham consideração para com os que se esforçam no trabalho entre vocês, que os lideram no Senhor e os aconselham. Tenham-nos na mais alta estima, com amor, por causa do trabalho deles.” (1 Ts 5.12,13). O autor da carta aos hebreus também disse: “Obedeçam aos seus líderes e submetam-se à autoridade deles. Eles cuidam de vocês como quem deve prestar contas. Obedeçam-lhes, para que o trabalho deles seja uma alegria e não um peso, pois isso não seria proveitoso para vocês” (Hb 13.17).
Outra observação importante é a de que Paulo lida com todos os quatro grupos chamando-os de “crianças.” Kistemaker explica que esse termo é humilhante. Trata-se de uma exortação acerca da imaturidade dos mesmos. Desta forma, todos os facciosos eram imaturos, não passavam de crianças que não estavam glorificando a Deus.[17] A infantilidade dos quatro grupos era tão grande que Paulo alega não poder dar um alimento mais sólido. Ele está fazendo uso de uma metáfora para dizer que não pode tratar de doutrinas mais profundas, pois eles a imaturidade deles clama por um alimento mais leve e básico, isto é, as doutrinas rudimentares da fé cristã.
Desta forma, parafrasear que não somos de Paulo, Pedro, Apolo, Armínio ou Calvino, a fim de defender, com base no texto de 1 Coríntios 1.12, que tal pessoa é seguidora de Cristo apenas e que não segue os ensinos de nenhum outro mestre, configura um erro duplo: exegético e histórico-teológico. O erro exegético já foi exposto. Portanto, nas próximas linhas nos encarregaremos de demonstrar os erros histórico-teológicos.
Nenhuma pessoa que estuda as Escrituras está isenta de pressupostos. Todas as comunidades cristãs possuem alguma linha teológica que é oriunda de algum pensamento da história da teologia cristã. Mesmo aquelas pessoas que alegam não seguir teologia nenhuma, acabam seguindo inconscientemente determinados pontos amalgamados, ou acabam seguindo uma teologia própria. Até mesmo as heresias não são novidades. Se pesquisarmos com atenção, poderemos encontrar algum vínculo da ideia heterodoxa na história do cristianismo.[18]
Um primeiro exemplo disso é o que chamamos de Trindade. Esta doutrina faz parte da lista daquelas que são rudimentares da fé cristã. Negar a Trindade é negar o próprio Deus. O cristianismo precisou realizar concílios para discutir questões teontológicas e cristológicas, verberando ao final que Deus é trino. Entretanto, essa nomenclatura (Trindade) foi usada, pela primeira vez, por Tertuliano de Cartago (160-220 d.C.),[19] um cristão apologista e polemista. No final do capítulo 2 de sua obra Adversus Praxeam (Contra Práxeas), ele declarou que

A heresia, a qual supõe por si mesma possuir a pura verdade, pensando que não se pode crer que um só Deus de nenhum outro modo a não ser dizendo que o Pai, o Filho e o Espírito Santo são a mesma Pessoa, como se neste modo um também não fosse todos, em que todos são um, por unidade de substância, enquanto o mistério da dispensação é, todavia, guardado, o qual distribui a Unidade na Trindade, colocando em sua ordem as três Pessoas – o Pai, o Filho e o Espírito Santo: três, mas não em condição e sim em grau, não em substância e sim em forma, não em poder e sim em aspecto.[20]

Como podemos perceber, Tertuliano está desenvolvendo uma nomenclatura para explicar que a divindade dos cristãos é única, mas que subsiste em três pessoas. O alvo de sua obra polemista é alguém chamado Práxeas. Kelly explica que não é fácil determinar quem ele era, podendo ter sido Noeto ou até mesmo o Papa Calixto. Independente da dificuldade de quem ele era, Tertuliano anuncia que suas ideias eram heréticas, pois seu ensino era o de que o Pai, o Filho e o Espírito Santo eram a mesma pessoa. Nessa concepção, o Pai teria encarnado no ventre da Virgem e se tornado o próprio Filho, que sofreu, morreu e ressuscitou.[21]
Esse ensino prefigurou o que alguns anos mais adiante ficaria conhecido como sabelianismo, em função de seu defensor, o Sabélio (? – 215 d.C.), modalismo (por entender que Deus havia se manifestado em três modos) ou patripassianismo (que vem de duas palavras latinas, patri, que significa pai, e passio, que significa sofrimento). Atualmente, esta mesma heresia é defendida sob a nomenclatura de unicismo.
Tertuliano teve um papel fundamental para a utilização universal do termo “Trindade” e na difusão dessa doutrina. Agostinho de Hipona, outro importante teólogo patrístico, escreveu um tratado muito importante acerca da doutrina da Trindade cerca de trezentos anos depois de Tertuliano, intitulado De Trinitate. Entretanto, isso não faz dos cristãos seguidores do apologista de Cartago. Poderia ter ressoado no terceiro século uma falácia lógica: “nem trinitariano e nem unitariano, sou bíblico.”[22]
Ser trinitariano, portanto, não é o mesmo que ser tertulianista. A cristandade deve muito ao esforço do apologista de Cartago, mas isso não faz dos cristãos seguidores de todos os pensamentos teológicos dele.[23] Tertuliano negava, por exemplo, a virgindade perpétua de Maria, mas parecia crer numa espécie de imaculada concepção da mesma.[24]
O mesmo acontece com inúmeras outras áreas da teologia. Se existe uma doutrina que mais sofreu com interpretações equivocadas no decorrer da história da Igreja foi, sem sombra de dúvidas, a cristologia. Temos os primeiros indícios desses transtornos em uma das epístolas joaninas, ao nos depararmos com uma defesa da dupla natureza de Cristo, diante dos gnósticos que negavam a encarnação do verbo (1Jo 4.1-3). A discussão sobre a natureza de Cristo perdurou alguns séculos da era cristã. Ário, por exemplo, negava a divindade de Jesus e dizia que Ele era uma criação, ainda que a mais sublime. Tal controvérsia foi debatida no Concílio de Niceia, em 325 d.C., mas só foi solucionada definitivamente em Constantinopla, no ano de 381 d.C..
Apesar do desfecho triunfante sobre o arianismo em Constantinopla, uma nova heresia surgiria meio século depois. Dessa vez, a controvérsia cristológica tomaria nova versão em Nestório, que fora empossado como patriarca de Constantinopla em 428 d.C.. Ele dizia que, em Jesus, havia duas pessoas distintas e independentes, uma humana e outra divina. Suas ideias foram rebatidas e anatematizadas no Concílio de Éfeso em 431 d.C.
Em suma, podemos definir assim os três concílios supracitados: Niceia afirmou: Jesus é Deus; Constantinopla, por sua vez, declarou: Jesus é também plenamente homem; e finalmente Éfeso concluía com a união hipostática: Ele é plenamente Deus e plenamente homem, são duas naturezas integradas em uma única pessoa, a saber, Jesus Cristo.[25] Embora o concílio de Éfeso tenha afirmado a doutrina da união hipostática, alguém precisou cunhar esse termo antes. A pessoa responsável pela utilização desse termo foi Cirilo de Alexandria (378-444 d.C.), um Bispo que esteve envolvido diretamente na controvérsia nestoriana.[26] Isso não faz com que sejamos cirilianos e tampouco é plausível que usemos uma falácia lógica aqui: “não creio na união hipostática e nem no nestorianismo, sou bíblico.”
O último caso histórico que penso ser pertinente para esse artigo é o da origem do pentecostalismo clássico. Sabemos que esse movimento é bisneto do wesleyanismo. O clérigo anglicano, John Wesley, teve sua experiência do coração aquecido em Aldergaste e se tornou outra pessoa. Sua crença na perfeição cristã, ao contrário do que muitos pensam, não era de impecabilidade, e sim de efeitos da verdadeira conversão. Wesley não cria em duas bênçãos e sim apenas em uma.[27] Desta forma, a regeneração era o princípio da santificação para Wesley.[28]
A ideia de segunda bênção começa a ser aplicada no metodismo posterior a Wesley. A primeira pessoa a utilizar essa terminologia foi John Fletcher, um dos discípulos de Wesley. Esse metodismo dá origem a outro movimento, nascido nos EUA, conhecido como Holiness (movimento de santidade). Até aqui, as denominações metodistas e holiness mantinham a crença de que o batismo no Espírito Santo era evidenciado por uma vida de santidade, isto é, pelo fruto do Espírito Santo. Foi quando um ex-ministro metodista, Charles Fox Parham (1873-1829), abriu uma casa de estudos chamada Betel, em Topeka, no Kansas.

No ano de 1900, enquanto Parham e seus alunos estudavam, ele perguntou sobre as bases bíblicas da doutrina do batismo com o Espírito Santo. Embora seus alunos fossem oriundos do círculo holliness e a interpretação normal fosse a de que o batismo era evidenciado pela vida de santidade, num exame bíblico dessa aula, os alunos chegaram a conclusão de que ele era evidenciado pelo falar noutras línguas. (...) Parham passou a pregar (...) uma terceira obra da Graça, com a diferença de que a terceira consistia em ser batizado no Espírito falando em outras línguas. Na noite de ano novo de 1901, o grupo passou a buscar essa experiência e na madrugada do dia primeiro, Agnes Oznam, foi a primeira pessoa a receber tal batismo. Desde então Parham passou a ensinar o que ele denominou de “Fé Apostólica” em Kansas e nos estados circunvizinhos, vindo a abrir uma escola em Houston, no Texas.[29]

Em 1903, William Seymour (1870-1922), que fora ordenado pela Igreja de Deus (Anderson, Indiana), foi estudar em Houston, na escola de Parham. Ele acabou sendo expulso de sua denominação por pregar a terceira obra da graça. Seymour foi a pessoa que esteve à frente do que ficou conhecido como Avivamento da Rua Azuza. O movimento da Rua Azuza atraiu pessoas de inúmeras confissões e tradições, desde batistas, congregacionais, metodistas e outros. Entretanto, a questão de uma terceira obra da graça gerou muitas controvérsias pelas denominações estadunidenses e ocorreram muitas divisões eclesiais e doutrinárias.
Quem rompeu, todavia, com a ideia de três obras da graça, foi o pregador Batista William Durham (1873-1912). Durham aderiu à experiência de línguas, mas adotou a visão de santificação de sua denominação. Por isso, ele declarou, em 1910, que o ensino da inteira santificação não é bíblico e que Cristo proporcionou a santificação na expiação. Ele assinalava, ainda, que a santificação é recebida na conversão por identificação em Cristo por um ato de fé e chamava essa doutrina de “obra completa do Calvário.” Outrossim, Durham passou a dizer que o batismo no Espírito Santo é, além de evidenciada pelo falar em línguas, a segunda obra da graça e que qualquer pessoa poderia recebe-la através da fé e de uma busca sincera.[30]
Como se pode perceber, a crença do que chamamos de Pentecostalismo clássico, ou de Pentecostalismo de Primeira Onda, tem sua consolidação em William Durham. Os pentecostais brasileiros não têm timidez e nem ressalvas de assumir a crença de que o batismo no Espírito Santo é evidenciado pelo falar em línguas. Eles não dizem, “não sou pentecostal e nem metodista, sou bíblico.” Isso pode ser visto na maior denominação pentecostal clássica brasileira, as Assembleias de Deus. No documento intitulado Em que crêem os Pentecoostais de 1938, diz que a referida denominação crê e prega o batismo no Espírito Santo. Em 1969, o jornal oficial da mesma instituição, o Mensageiro da Paz, publicou uma página com seus artigos de fé, intitulado Cremos, que são os artigos oficiais até o presente momento. Em seu nono artigo diz o seguinte: “[Cremos] No batismo bíblico no Espírito Santo que nos é dado por Deus mediante a intercessão de Cristo, com a evidência inicial de falar em outras línguas, conforme a sua vontade.”[31]

É possível não ser arminiano ou calvinista?
Diante do que já foi exposto está claro que, ser arminiano, portanto, não implica na adoção integral das ideias de Armínio e sim apenas no que tange à soteriologia, visto que o rótulo teológico arminianismo é usado para identificar a interpretação da relação criação – queda – redenção a partir de uma epistemologia do amor. O calvinismo, em contrapartida, interpreta a mesma relação a partir de uma epistemologia da soberania de Deus.
Os rótulos teológicos, embora nem sempre consigam ser precisos, são úteis para identificar qual é o tipo de interpretação sobre certa doutrina das Escrituras. Por exemplo, dentro da escatologia, a doutrina das últimas coisas, temos interpretações diferentes sobre o reino de Deus. Alguns entendem que esse reino é apenas futuro e possuem uma perspectiva conhecida como Pré-milenismo. Essa vertente, entretanto, divide-se em duas vertentes, o histórico e o dispensacionalista. Normalmente eles são pessimistas em relação ao mundo atual, mas já existe um grupo pré-milenista que tem uma visão progressista da terra. Ainda na interpretação milenial, existem os pós-milenistas, que possuem uma visão otimista da terra e os amilenistas, que têm uma visão pessimista. Os dois últimos sistemas não crêem num milênio literal e entendem que este reino de Deus já está ocorrendo na época da Igreja. Esses rótulos nos ajudam a entender nossos posicionamentos.
A mesma questão ocorre em relação à eclesiologia, a doutrina da igreja. Certas denominações se posicionam como favoráveis ao sistema de governo presbiteriano, outros em favor do congregacional, outros preferem o episcopal, e ainda, existe o sistema representativo.[32] Outras são pedobatistas, outras credobatistas. Algumas são consubstancialistas, outras apenas crêem no memorial. Certas comunidades ordenam mulheres ao pastorado, outras não. Algumas possuem mais oficiais do que a Bíblia relata, outras têm apenas o Presbítero e o Diácono. Enfim, a questão é que os rótulos estão presentes em todas as nossas doutrinas. Mas, como o foco do presente artigo é a soteriologia, fica a questão: é possível não ser arminiano ou calvinista?
Respondendo à pergunta: sim, é possível. Os luteranos, por exemplo, não são calvinistas, embora creiam em boa parte do acrônimo TULIP. Suas confissões oficiais são: “A Confissão de Ausburgo” (1530), “A Apologia da Confissão de Ausburgo” (1530), “Os Artigos de Esmalcalde” (1537), Os Catecismos Maior e Menor (1529), e “A Fórmula de Concórdia” (1577). Todas estas confissões foram reunidas num só livro e publicadas em 1580, sob o nome de “O Livro de Concórdia”. A interpretação de livre-arbítrio, contida na confissão de Augsburgo, por exemplo, é exatamente igual ao entedimento arminiano:

Quanto ao livre arbítrio se ensina que o homem tem até certo ponto livre arbítrio para viver exteriormente de maneira honesta e escolher entre aquelas coisas que a razão compreende. Todavia, sem a graça, o auxílio e a operação do Espírito Santo o homem é incapaz de ser agradável a Deus, temê-lo de coração, ou crer, ou expulsar do coração as más concupiscências inatas. Isso, ao contrário, é feito pelo Espírito Santo, que é dado pela palavra de Deus. Pois Paulo diz em 1 Coríntios 2: “O homem natural nada entende do Espírito de Deus” (Artigo XVIII)

Para a teologia arminiana, o homem não regenerado possui um livre-arbítrio limitado, que pode ser chamado de natural, isto é, aquele que incide sobre decisões naturais e corriqueiras da vida. Todavia, para as coisas espirituais, este indivíduo não regenerado está morto e somente a graça de Deus é que pode atraí-lo e expulsar do seu coração “as más concupiscências inatas.”
Os luteranos também acreditam que o homem é eleito incondicionalmente, não pela presciência, mas pela predestinação divina. Em contrapartida, não crêem na dupla predestinação e entendem que os condenados, assim o são por rejeitarem a Jesus por escolha própria. Sendo assim, a graça pode ser resistida, embora seja oferecida livremente a todas as pessoas. A fé é um dom de Deus, mas só é recebida pelos eleitos, os incrédulos a rejeitam. Jesus morreu por todas as pessoas, mas não pagou por todos os pecados. O único pecado que Jesus não teria morrido é o da incredulidade, que é interpretada como sendo a blasfêmia contra o Espírito Santo. A salvação é assegurada para a pessoa que está em Cristo, mas a apostasia é possível, caso a fé seja perdida.
Em suma, os luteranos crêem na total depravação, na eleição incondicional, na expiação ilimitada, na graça resistível e na perseverança condicional dos santos. Curiosamente, eles são monergistas. Deste modo, os únicos axiomas que estariam em convergência com a TULIP seriam o T e o U.[33] Sendo assim, entendo que embora não sejam arminianos, estejam mais próximo do arminianismo do que do calvinismo. Isso, inclusive, merece uma releitura do termo “reformado” que acabou sendo apropriado pelos calvinistas, visto que o luteranismo é o movimento precursor da reforma.
Além dos luteranos, existe uma nova tentativa de não se denominar arminiano e nem calvinista. Timothy George, que é um dos representantes do molinismo, sugere que ao invés de TULIP, o acônimo ROSES, onde R significa Radical Depravity (Depravação Radical), O Overcoming Grace (Graça Superadora), S Sovereing Election (Eleição Soberana), E Eternal Life (Vida Eterna) e S Singular Redemption (Redenção Peculiar).[34]
Kenneth Keathley, que é outro escritor molinista, segue a proposta de George e diz concordar com três pontos da TULIP, a saber: T, U e P. Os únicos dois pontos que ele alega não concordar são, portanto L e I, que correspondem, respectivamente aos axiomas S (o segundo, Singular Redemption) e O (Overcoming Grace) do acrônimo ROSES. S nada mais é do que o que chamamos de expiação ilimitada no arminianismo e O nada mais é do que a graça preveniente.[35] É importante destacar que, a proposta de ROSES não é uma proposta molinista e sim uma proposta de um molinista, visto que o molinismo trata da onisciência e soberania divinas frente ao livre-arbítio libertário.
Além dessas propostas, desconheço outra tentativa de sistematizar a soteriologia, a não ser equívocos que ficaram sendo conhecidos como pelagianismo e semi-pelagianismo. O primeiro foi a posição defendida por um monge britânico chamado Pelágio. Ele cria que o ser humano nasce neutro espiritualmente e que aprenderá a pecar por socialização. Esse extremo gerou um debate com Agostinho de Hipona, que, por sua vez, defendia o pecado original e que o ser humano nasce morto espiritualmente. Pelágio, então, negou o pecado original e suas ideias foram consideradas como heréticas.
A posição pelagiana interfere nas demais doutrinas da salvação, pois ao negar o pecado original, conduz a um sistema de auto-salvação. Com isso, não importa se a graça é resistível ou irresistível, ela se torna inútil. A eleição, bem como a perseverança, é realizada pelo próprio individuo, que toma a decisão de ser salvo e de perseverar por conta própria. Essa capacidade inata do homem configura um monergismo. O pelagianismo é um ponto de vista popular em alguns círculos evangélicos da atualidade. Muitas vezes é um ponto de vista defendido pelo desconhecimento histórico-teológico.
Já o semi-pelagianismo é foi uma tentativa dialética (tese, antítese, síntese). Um homem chamado João Cassiano pretendeu achar um meio termo na controvérsia pelagiana e com isso negou tanto que o homem nasce neutro, quanto que o homem nasce morto espiritualmente. Sua proposta foi a de que o homem nasce neutro, isto é, de que é possível dar o primeiro passo em direção a Deus, quem completará a ação salvífica. Isso só é possível nesse sistema, porque João Cassiano entendia que a imago Dei não foi completamente afetada. O semipelagianismo é, ainda, mais popular no Brasil do que o pelagianismo. Grande parte das pessoas que se intitulam arminianas é, na verdade, semipelagiana. Elas negam a depravação total e assumem uma depravação parcial.[36]

Considerações finais
Afirmar não ser arminiano e nem calvinista, sob o pretexto de que é bíblico, configura uma falácia lógica. A frase pode até parecer piedosa e resgatadora da bibliocentrocidade. Todavia, conforme já foi analisado, os sistemas soteriológicos arminiano e calvinista são bíblicos. Outrossim, é usada uma falácia para defender a falácia analisada. Trata-se de dizer que não somos de Paulo, nem de Pedro, nem de Apolo, nem de Armínio e nem de Calvino, mas de Cristo. Esta falácia também foi analisada e chegamos à conclusão de que o texto bíblico que embasa esse argumento é utilizado de maneira equivocada, pois os de Cristo eram tão facciosos quanto os três grupos anteriores.
Concluímos, ainda, que ser arminiano ou calvinista não se trata de ser um seguidor integral de todos os pontos de vista dos teólogos que representam esses sistemas, a saber, Jacó Armínio e João Calvino. Dizer que não se segue o arminianismo por causa de Armínio é outra falácia que foi desconstruída, haja vista outros pontos doutrinários que foram construídos por pessoas altamente importantes no cristianismo histórico, tais como Tertuliano, Cirilo de Alexandria Agostinho e William Durham, dentre vários outros que não foram mencionados no presente artigo.
Uma última conclusão importante é que, a soteriologia não é bipolar, isto é, não está limitado aos pólos do arminianismo e do calvinismo. É possível não ser arminiano e não ser calvinista e ainda assim, propor alternâncias nos axiomas que envolvem a soteriologia. Creio que o único axioma que não permite essa modificação seja o da depravação total, visto que a neutralidade ou a parcialidade dele recairá em pelagianismo ou semipelagianismo, e assim o sistema deixará de ser bíblico.


Notas


[1] Bacharel em Teologia pela Faculdade Nazarena do Brasil (FNB), especialista em Ciências da Religião pela Universidade Cândido Mendes e Mestrando em Teologia pela Faculdade Batista do Paraná. Professor de Teologia na FNB e no Seminário Teológico Nazareno do Brasil (STNB). Email: prviniciuscouto@yahoo.com.br.
[2] Uma obra muito importante que trata da desmitificação do arminianismo é OLSON, Roger. Teologia arminiana: mitos e realidades. São Paulo: Reflexão, 2013.
[3] OLSON, Roger E. Op. Cit., p. 243.
[4] COPI, Irving. M. Introdução à lógica. São Paulo: Mestre Jou, 1978, p. 73.
[5] CUNHA, Marisa Ortegoza da; MACHADO, Nilson José. Lógica e linguagem cotidiana: verdade, coerência, comunicação e argumentação. Belo Horizonte: Autêntica, 2008,  pp. 13, 15.
[6] GOLDSTEIN, Laurence; BRENNAN, Andrew; DEUTSH, Max; LAU, Joe Y. Lógica: conceitos-chave em filosofia. Porto Alegre: Artmed, 2007, p. 27.
[7] Ibid, p. 29.
[8] Idem.
[9] CHAMPLIN, Norman; BENTES, João Marques. Enciclopédia de Bíblia, Teologia e Filosofia. São Paulo: Candeia, 1991, volume 2, p. 673.
[10] Ibid, volume 1, p. 536.
[11] Eisegese é uma expressão teológica que significa “de fora para dentro.” Trata-se de interpretar o texto bíblico a partir de pressupostos, da cultura ou de outros fatores externos, forçando a incorporação deles ao sentido original do texto. O contrário disso é a exegese, cujo significado é “de dentro para fora.” Esse é o método correto de interpretação das Escrituras. Devemos analisar qual é o objetivo original do texto a partir da cultura, geografia, etimologia, teologia e demais contextos da época. Depois disso, podemos realizar aplicações para a nossa realidade, interligando o texto antigo com o leitor ou ouvinte contemporâneo.
[12] Ibid, p. 40.
[13] Ibid, p. 40ss.
[14] Apesar disso, o calvinismo ainda defende que é mais do que um sistema soteriológico e entendem-se a si mesmos como uma cosmovisão. Por isso, neste artigo tenho procurado sempre me referir à soteriologia calvinista.
[15] LLOYD-JONES, Martin. Uma Escola Protestante Evangélica: In: Discernindo os Tempos. São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1994, p. 389.
[16] MORRIS, Leon. 1 Coríntios: introdução e comentário. São Paulo: Vida Nova, 2011, p. 32.
[17] KISTEMAKER, Simon. Comentário do Novo Testamento: exposição da primeira epístola aos coríntios. São Paulo: Cultura Cristã, 2003, pp. 147-148.
[18] Para uma breve noção sobre essa ideia, conferir o artigo que escrevi: COUTO, Vinicius. Heresias contemporâneas: um reflexo das controvérsias dos primeiros cinco séculos da era cristã. Disponível em: http://prviniciuscouto.blogspot.com.br/2013/12/heresias-contemporaneas-um-reflexo-das.html. Acesso em 27 de outubro de 2016.
[19] KELLY, J. N. D. Patrística: origem e desenvolvimento das doutrinas centrais da fé cristã. São Paulo: Vida Nova, 2009, p. 84.
[20] TERTULIANO. Against Praxeas 2.
[21] KELLY, J. N. D. Op. Cit., p. 90.
[22] Embora haja um anacronismo na frase, pois o cânon neotestamentário ainda não estava fechado, a ideia da mesma é apenas parafrasear a falácia que estamos analisando neste artigo.
[23] Para um estudo sobre alguns itens da teologia de Tertuliano ver: SILVA, Elias Gomes da. O pensamento teológico de Tertuliano. Disponível em: http://www.monergismo.com/textos/biografias/pensa-teo-Tertuliano_Elias-Gomes.pdf. Acesso em 27 de outubro de 2016.
[24] COUTO, Vinicius. Culto Cristão: origens, desenvolvimento e desafios contemporâneos. São Paulo: Reflexão, 2016, p. 65, 68.
[25] REILY, Duncan. A História da Igreja. São Paulo: Imprensa Metodista, 1993, p.46.
[26] KELLY, J. N. D. Op. Cit., p. 236.
[27] A obra mais completa sobre a visão de Wesley a cerca da inteira santificação e sua crença em apenas uma obra da graça, em português, é: NOBLE, Thomas. Trindade Santa, Povo Santo: a teologia da perfeição cristã. Maceió: Sal Cultural, 2015.
[28] Para entender melhor sobre a visão de Wesley sobre santificação, ver: COUTO, Vinicius. Em favor do Arminianismo-Wesleyano: um estudo bíblico, teológico e exegético de sua relevância na contemporaneidade. São Paulo: Reflexão, 2016, pp. 181-194.
[29] COUTO, Vinicius. Culto Cristão, pp. 167,168.
[30] Ibid, pp. 168-170.
[31] As fotos dos dois documentos citados podem ser vistos na matéria a seguir: GERMANO, Altair. A origem do “cremos” das Assembleias de Deus no Brasil. Disponível em: http://www.altairgermano.net/2011/10/origem-do-cremos-das-assembleias-de.html. Acesso em 27 de outubro de 2016. Uma curiosidade é que no documento de 1938, há um claro posicionamento contra o calvinismo, mas ao mesmo tempo, não há um posicionamento em favor do arminianismo: “...o movimento pentecostal não admite o fanatismo das predestinações e salvação incondicional; mas, se adstringe à Palavra de Deus, aceitando e pregando a salvação pelo sangue de Jesus...”. Assim como os pentecostais assembleianos se posicionam no batismo no Espírito Santo, também o fazem na escatologia, adotando o pré-milenismo (Cf o artigo 11°).
[32] A Igreja do Nazareno adota uma forma distinta de governo, chamada de representativo. Trata-se de uma forma de governo no qual a comunidade é dirigida por ministros e leigos. Há uma junta de governo que é responsável pelas decisões locais. Essa junta é composta pelo pastor titular, que é o presidente da junta e por outras pessoas que são eleitas pela igreja local, a saber, secretário, tesoureiro, presidente do departamento de missões, presidente do departamento de EBD, presidente do departamento de jovens, presidente do departamento de diáconos e os ecônomos.
[33] Para consultar mais sobre a soteriologia luterana, consultar: KOEHLER, Edward; KUHLMAN, Brent. Summary of Christian Doctrine: a popular presentation of the teachings of the Bible. Saint Louis: Concordia Publishing House, 2006; JACKSON, Gregory L. Catholic, Lutheran, Protestant: a comparison of three Christian confessions. Glendale: Martin Chemnitz Press, 2007; KOLB, Robert. The Christian faith: a Lutheran exposition. Saint Louis: Concordia Publishing House, 1993.
[34] GEORGE, Timothy. Amazing Grace: God’s Initiative – Our Response. Nashville: Lifeway, 2000, pp. 71-83.
[35] KEATHLEY, Kenneth. Salvation and Sovereignty: a molinist approach. Nashville: B&H Academic, 2010, pp. 1-4.
[36] Para um entendimento mais detalhado dos sistemas pelagiano, agostiniano e semipelagiano, ver: TITILLO, Thiago. A gênese da predestinação na história da teologia cristã: uma análise do pensamento agostiniano sobre o pecado e a graça. São Paulo: Reflexão, 2016, pp. 61-98.