A
doutrina que mais sofreu com interpretações equivocadas no decorrer da história
da Igreja foi, sem sombra de dúvidas, a cristologia. Temos os primeiros
indícios desses transtornos em uma das epístolas joaninas, ao nos depararmos
com uma defesa da dupla natureza de Cristo, diante dos gnósticos que negavam a
encarnação do verbo (1Jo 4.1-3). A discussão sobre a natureza de Cristo
perdurou alguns séculos da era cristã. Ário, por exemplo, negava a divindade de
Jesus e dizia que Ele era uma criação, ainda que a mais sublime. Tal
controvérsia foi debatida no Concílio de Niceia, em 325 d.C., mas só foi
solucionada definitivamente em Constantinopla, no ano de 381 d.C..
Apesar
do desfecho triunfante sobre o arianismo em Constantinopla, uma nova heresia
surgiria meio século depois. Dessa vez, a controvérsia cristológica tomaria
nova versão em Nestório, que fora empossado como patriarca de Constantinopla em
428 d.C.. Ele dizia que, em Jesus, havia duas pessoas distintas e
independentes, uma humana e outra divina. Suas ideias foram rebatidas e
anatematizadas no Concílio de Éfeso em 431 d.C..
Em
suma, podemos definir assim os três concílios supracitados: Niceia afirmou:
Jesus é Deus; Constantinopla, por sua vez, declarou: Jesus é também plenamente
homem; e finalmente Éfeso concluía com a união hipostática: Ele é
plenamente Deus e plenamente homem, são duas naturezas integradas em uma única
pessoa, a saber, Jesus Cristo.1
Além
das controvérsias sobre a natureza de Cristo, houve alguma discussão sobre a
expiação. Alguns diziam, equivocadamente, como foi o caso de Orígenes, que a
expiação de Cristo fora um resgate pago a Satanás. Outros defenderam uma teoria
mística, afirmando que Jesus venceu a própria natureza pecaminosa e que o
conhecimento deste triunfo despertaria o ser humano. Isso sem contar aqueles
que reduziram a expiação a um mero exemplo ou a uma influência moral.
Uma
heresia contemporânea vinculada à expiação pode ser encontrada nos círculos do
movimento neopentecostal. Proponentes como Hagin, Copeland e Milhomens ensinam
que a expiação de Cristo só teria efeito pleno caso o Salvador morresse
espiritualmente. Tal assunto tem sido palco de muitas dúvidas e confusões no
meio evangélico, de modo que carece de maiores esclarecimentos. Diante do
exposto, cabe a indagação: Jesus morreu espiritualmente?
Quais
são os pressupostos para tal doutrina?
A ideia
de que Cristo morreu espiritualmente é baseada em textos como 2 Coríntios 5.21;
Mateus 27.46; Atos 13.33 e principalmente Salmo 16.10; Romanos 10.6,7; Efésios
4.8-10; e 1 Pedro 3.18-20; 4.6. Romeiro resume essa doutrina da seguinte
forma:
(…) ao
morrer na cruz, Jesus recebeu uma natureza satânica, foi feito pecado, desceu
ao inferno em nosso lugar e lá foi atormentado três dias e três noites pelo
diabo. Jesus teve que morrer espiritualmente para pagar pelos pecados do homem
no inferno, pois sua morte física e seu sangue derramado na cruz foram
insuficientes para fazer a expiação. Depois de três dias no inferno, Jesus
nasce de novo e derrota os poderes das trevas, completando no inferno a
expiação que havia começado na cruz. O Jesus nascido de novo ressuscita e é
elevado à mão direita do Pai. Hoje ele tem poder para devolver à Igreja tudo o
que ela havia perdido para o diabo através da queda de Adão e Eva.2
Apesar
das palavras assustadoras, podemos ver que Romeiro não está errado, visto que
seus proponentes realmente fazem declarações consistentes com o que acabamos de
ler. Kenneth Hagin, por exemplo, disse:
Seu
espírito, seu homem interior, foi para o inferno em nosso lugar (…) A morte
física não removeria os nossos pecados. Provou a morte por todo homem — a morte
espiritual (…) A morte espiritual significa mais do que a separação de Deus. A
morte espiritual significa ter a natureza de Satanás (…) Jesus se fez pecado.
Seu espírito foi separado de Deus, e Ele desceu para o inferno em nosso lugar
(…) Lá embaixo na masmorra do sofrimento — lá nos fundos do próprio inferno — Jesus
satisfez as reivindicações da Justiça para todos nós (…) Deus no céu disse: ‘É
suficiente’. Depois, O ressuscitou. Trouxe seu espírito e alma para cima,
tirando-os do inferno.3
Kenneth
Copeland, outro propagador do mesmo ensino comentou: “Uma vez que ele [Jesus]
foi feito pecado, ele teve que pagar a pena pelo pecado. Teve de morrer
espiritualmente, o que o levou às regiões dos perdidos, antes que ele pudesse
nos redimir (…) Quando seu sangue foi derramado, ele não fez expiação”.4
Além
dos dois proponentes já citados, vale citar uma representante nacional. Romeiro
conta que Valnice Milhomens, fazendo um comentário de Isaías 53.9 5 durante um programa de televisão, afirmou que a
palavra “morte”, no texto original, está no plural – “mortes” – o que significaria
que Jesus morreu duas vezes, física e espiritualmente.6
Complementando
todas essas informações, podemos citar E. W. Kenyon, o qual explica que a morte
espiritual é “a natureza do adversário”7 e
que, através dessa morte, Jesus se identificou com a humanidade. Segundo ele,
Jesus tinha um corpo imortal e divino, não era como o corpo humano. Para que o
sacrifício de Cristo fosse eficiente e eficazmente substitutivo, Jesus deveria
morrer primeiro espiritualmente. “Era um corpo que não podia morrer até que o
pecado possuísse o Seu espírito”.8
Jesus
morreu espiritualmente?
Essa
deveria ser uma pergunta retórica, visto que a Bíblia não abre nenhuma margem
para uma resposta positiva. Apesar da obviedade, algumas interpretações
inconsistentes têm sido propagadas e gerado dúvidas e confusões.
Inequivocamente, Jesus não pode ter morrido espiritualmente e as razões são
mais do que óbvias, conforme será explicado doravante.
Uma das
argumentações para a morte espiritual de Jesus é a de que a ressurreição de
Cristo deveria ser diferente das demais ocorridas no Novo Testamento, visto que
o próprio Jesus operara três ressurreições. Entretanto, a diferença entre a
ressurreição de Cristo e as de Lázaro, do filho da viúva de Naim e da filha de
Jairo é que estes morreriam novamente, pois foi uma ressurreição para esta
vida, ao passo que aquele, primícias dos que dormem, foi o primeiro a vencer a
morte eternamente.
Os
defensores da morte espiritual de Cristo desejam mostrar que, para que a
expiação de Cristo fosse eficaz, Ele deveria morrer espiritualmente. O problema
desta ideia é que “morte espiritual” pressupõe pecaminosidade. Portanto, Jesus
teria que ter pecado para morrer espiritualmente. Lembrando as palavras
supracitadas de Kenyon: “Era um corpo que não podia morrer até que o pecado
possuísse o Seu espírito”.
McConnell
explica que essa crença é uma interpretação grosseira do sacrifício
substitutivo, cuja plataforma está em 2 Coríntios 5.21. Os sacrifícios
realizados no Antigo Testamento tipificavam o que Jesus faria por nós, mas tais
animais deveriam ser sem defeitos (cf Lv 4.3, 23, 32). “A pessoa que
apresentava essas ofertas santas colocava a sua mão sobre os animais para
simbolizar a transferência de seu pecado e culpa (Levítico 4.4, 24, 33). Essa
transferência de pecado era simbólica e não literal”. McConnell assevera que “o
animal sacrificial não se tornava pecado; o pecado era-lhe simbolicamente
atribuído”.9
A
teoria da expiação dos proponentes neopentecostais ainda não foi nomeada, mas
pode facilmente ser catalogada como “teoria da identificação”. Assim como
muitas teorias sobre a expiação não encontraram respaldo bíblico e foram
consideradas como heréticas, a ideia de que Jesus se identificou com a
humanidade e morreu espiritualmente segue a mesma trilha.
A
Bíblia mostra que o salário do pecado é a morte (Rm 6.23) e que toda humanidade
pecou e está destituída da glória de Deus (Rm 3.23). Portanto, para que Jesus
morresse espiritualmente, teria que ter pecado, o que contradiz a própria
Escritura: “Porque não temos um sumo sacerdote que não possa compadecer-se das
nossas fraquezas; porém um que, como nós, em tudo foi tentado, mas sem
pecado” (Hb
4.15 – grifos meus).
Pedro
também disse: “(…) sabendo que não foi com coisas corruptíveis, como prata ou
ouro, que fostes resgatados da vossa vã maneira de viver, que por tradição
recebestes dos vossos pais, mas com precioso sangue, como de um cordeiro sem
defeito e sem mácula,
o sangue de Cristo (…)” (1Pe 1.18,19 – grifos meus). Não obstante, tal ideia
vai de encontro com o que Paulo declarou: “Aquele que não
conheceu pecado, Deus
o fez pecado por nós; para que nele fôssemos feitos justiça de Deus” (1Co 5.21
– grifos meus).
O que
dizer da natureza diabólica? Teria Jesus assumido em sua suposta “morte
espiritual” a natureza de Satanás? O próprio Cristo contradiz tal hipótese: “Já
não falarei muito convosco, porque vem o príncipe deste mundo, e ele nada tem em mim” (Jo 14.30 – grifos meus).
Jesus
desceu ao inferno?
Para
dar mais sentido à “teoria da identificação”, seus proponentes afirmam que
Jesus desceu ao inferno e que foi atormentado pelo diabo por três dias. De
acordo com eles, somente depois de ter cumprido essa pena – que seria nossa – é
que Jesus pregou aos espíritos em prisão, tomou as chaves das mãos do diabo e
foi, em seguida, ressuscitado.
Apesar
dessa ordo resurrectio proposta pelos defensores da morte espiritual de
Cristo, o clássico texto petrino sobre a descida de Jesus ao hades é claro ao afirmar que Cristo morreu na carne, e
não no espírito, e que foi vivificado antes de pregar aos espíritos em prisão,
o que deixa um problema significativo para a interpretação de que Jesus ficou
no hades sendo torturado ou pagando pelos nossos pecados:
“Porque
também Cristo morreu uma só vez pelos pecados, o justo pelos injustos, para
levar-nos a Deus; sendo, na verdade, morto na carne, mas vivificado no espírito; no qual
também foi, e pregou aos espíritos em prisão” (1Pe 3.18,19 – grifos meus).
O Rev.
Heber Campos explica o significado da expressão “vivificado no espírito” em uma
excelente abordagem sobre a “descendit
ad inferna”. O
texto é um dos mais interessantes sobre o assunto, e esgota-o completamente.10 Vejamos o que diz o texto:
A
expressão ‘vivificado em espírito’, que possui similares em outros textos da
Escritura, diz respeito à vitória de Cristo na ressurreição, combinando-se com
o que Paulo diz em 1 Timóteo 3.16. Todavia, neste texto específico de 1 Pedro
3.19, o espírito vivificado ou vivificador pode ter mais significado se o
entendermos como a natureza divina do Redentor, antes de ele encarnar-se. Ele
vivia nesse estado de poder e não-limitação que contrasta com o estado de
fraqueza em que esteve nos dias de sua carne, e foi neste tempo de
não-limitação que ele foi e pregou aos espíritos em prisão, quando estes viviam
no tempo de Noé.11
Outro
texto utilizado para incrementar a descida ao hades é Lucas 23.43. Tradicionalmente, quem coloca uma
vírgula no versículo em questão o faz com o intuito de defender o sono da alma,
isto é, um estado de inconsciência post
mortem.
Todavia, os proponentes da “teoria da identificação” o fazem porque ficam em apuros.
Se Jesus disse “hoje estarás comigo no paraíso”, como conciliar a ideia de que
Cristo ficou padecendo três dias no Hades? Por isso pegam emprestada a ideia das Testemunhas
de Jeová e dos Adventistas do Sétimo dia, que traduzem Lucas 23.43 da seguinte
forma: “Em verdade te digo hoje, estarás comigo no paraíso”.
Tal
texto é muito bem interpretado por Hendrikssen, o qual explica que o ex-ladrão
fazia um pedido com expectativa longínqua, ao passo que Cristo mostra-lhe a
instantaneidade de sua obra salvífica. Não era necessário aguardar muito tempo,
a resposta era pontual: “hoje estarás comigo no paraíso”.12 A vírgula é descabida13 e só serviu para os defensores da morte espiritual
de Cristo darem um “tiro no pé”.
É
mister entender que Jesus não desceu ao inferno e tampouco tomou chaves das
mãos do diabo. A ideia de que o inferno é um local governado por Satanás e que
ele atormenta pessoas num caldeirão não passa de mera crendice popular. Não tem
apoio bíblico. Inferno (geena no
grego) é o local de tormento eterno (Mt 5.22,29,30) e é identificado com o lago
de fogo (Ap 20.14,15). Jesus desceu ao hades, correspondente grego de sheol (hebraico). Hades14 é um lugar temporário, enquanto geena é definitivo.
Considerações
finais
A
doutrina chamada neste artigo de “teoria da identificação” afeta seriamente a
cristologia e com maior perigo sua subárea, a expiação. Afirmar a morte
espiritual de Cristo é, além de uma heresia, uma ideia blasfema. Tais ensinos
não combinam com a ortodoxia e devem ser rejeitados pela comunidade cristã.
O
sacrifício de Cristo na cruz foi suficiente e eficiente, pois Ele (Jesus),
“subsistindo em forma de Deus, não julgou como usurpação o ser igual a Deus,
mas esvaziou-se a si mesmo, tomando a forma de servo, tornando-se semelhante
aos homens; e, achado na forma de homem, humilhou-se a si mesmo, tornando-se
obediente até a morte [física], e morte de cruz” (Fp 2.6-8).
Por
falar em cruz, foi lá mesmo que Jesus riscou “o escrito de dívida que havia
contra nós nas suas ordenanças, o qual nos era contrário”, removendo-o do meio
de nós. Ainda na cruz, Jesus despojou “os principados e potestades, os exibiu
publicamente e deles triunfou” (Cl 2.14,15). Finalmente, na cruz, o Redentor
declarou decisivamente: “Está consumado” (Jo 19.30).
Notas
____________________________________
1 REILY, Duncan. A História da Igreja. Imprensa Metodista, 1993, p.46.
2 ROMEIRO, Paulo. Supercrentes. Mundo Cristão, 1996, p. 58.
3 HAGIN, Kenneth. O Nome de Jesus. Graça Editorial, 1988, pp. 25-28.
4 KOPELAND Apud ROMEIRO, Paulo. Op. Cit., p. 59.
5 Is 53.9: “Designaram-lhe a sepultura com os perversos, mas com o rico esteve na sua morte.”
6 ROMEIRO. Op. Cit., pp. 60,61.
7 KENYON, E. W.. Realidades da nova criação: uma revelação da redenção. [s.n.: s. d.], pp. 51.
8 Idem. Identificação. [s.n.: s. d.], p. 13.
9 MCCONNELL, D. R.. A Differente Gospel. Hendrickson, 1988, pp. 126, 127.
10 A única observação a ser feita é sobre a interpretação da “descendit ad inferna” na tradição arminiana. Apesar da bibiografia usada pelo autor, não há uma interpretação unívoca na “tradição arminiana”. Muitos arminianos concordam com a exposição reformada que ele aborda no texto.
11 CAMPOS, Heber. “Descendit ad Inferna”: uma análise da expressão “desceu ao hades” no cristianismo histórico. Fides Reformata, 1999, 4/1.
12 HENDRIKSSEN, William. Comentário do Novo Testamento: Lucas. Cultura Cristã, 2003, volume 2, pp. 658,659.
13 Ver a argumentação de GEISLER, Norman; RHODES, Ron. Resposta às seitas. CPAD, 2001, pp. 249,250.
14 Sheol/Hades é uma esfera de divisão territorial dicotômica – salvos e perdidos (cf Mt 11.23; 16.18; Lc 10.15; 16.23; At 2.27.31), sendo que o espaço daqueles é chamado de “Paraíso” e “Seio de Abraão”. Ambos os territórios são separados por um “grande abismo” (Lc 16.26), mas quando Jesus subiu aos Céus, levou consigo os ocupantes do Paraíso (Ef 4.8-10), deixando o Sheol/Hades intacto.
1 REILY, Duncan. A História da Igreja. Imprensa Metodista, 1993, p.46.
2 ROMEIRO, Paulo. Supercrentes. Mundo Cristão, 1996, p. 58.
3 HAGIN, Kenneth. O Nome de Jesus. Graça Editorial, 1988, pp. 25-28.
4 KOPELAND Apud ROMEIRO, Paulo. Op. Cit., p. 59.
5 Is 53.9: “Designaram-lhe a sepultura com os perversos, mas com o rico esteve na sua morte.”
6 ROMEIRO. Op. Cit., pp. 60,61.
7 KENYON, E. W.. Realidades da nova criação: uma revelação da redenção. [s.n.: s. d.], pp. 51.
8 Idem. Identificação. [s.n.: s. d.], p. 13.
9 MCCONNELL, D. R.. A Differente Gospel. Hendrickson, 1988, pp. 126, 127.
10 A única observação a ser feita é sobre a interpretação da “descendit ad inferna” na tradição arminiana. Apesar da bibiografia usada pelo autor, não há uma interpretação unívoca na “tradição arminiana”. Muitos arminianos concordam com a exposição reformada que ele aborda no texto.
11 CAMPOS, Heber. “Descendit ad Inferna”: uma análise da expressão “desceu ao hades” no cristianismo histórico. Fides Reformata, 1999, 4/1.
12 HENDRIKSSEN, William. Comentário do Novo Testamento: Lucas. Cultura Cristã, 2003, volume 2, pp. 658,659.
13 Ver a argumentação de GEISLER, Norman; RHODES, Ron. Resposta às seitas. CPAD, 2001, pp. 249,250.
14 Sheol/Hades é uma esfera de divisão territorial dicotômica – salvos e perdidos (cf Mt 11.23; 16.18; Lc 10.15; 16.23; At 2.27.31), sendo que o espaço daqueles é chamado de “Paraíso” e “Seio de Abraão”. Ambos os territórios são separados por um “grande abismo” (Lc 16.26), mas quando Jesus subiu aos Céus, levou consigo os ocupantes do Paraíso (Ef 4.8-10), deixando o Sheol/Hades intacto.
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