segunda-feira, 4 de janeiro de 2016

Jesus Morreu Espiritualmente?

A doutrina que mais sofreu com interpretações equivocadas no decorrer da história da Igreja foi, sem sombra de dúvidas, a cristologia. Temos os primeiros indícios desses transtornos em uma das epístolas joaninas, ao nos depararmos com uma defesa da dupla natureza de Cristo, diante dos gnósticos que negavam a encarnação do verbo (1Jo 4.1-3). A discussão sobre a natureza de Cristo perdurou alguns séculos da era cristã. Ário, por exemplo, negava a divindade de Jesus e dizia que Ele era uma criação, ainda que a mais sublime. Tal controvérsia foi debatida no Concílio de Niceia, em 325 d.C., mas só foi solucionada definitivamente em Constantinopla, no ano de 381 d.C..
Apesar do desfecho triunfante sobre o arianismo em Constantinopla, uma nova heresia surgiria meio século depois. Dessa vez, a controvérsia cristológica tomaria nova versão em Nestório, que fora empossado como patriarca de Constantinopla em 428 d.C.. Ele dizia que, em Jesus, havia duas pessoas distintas e independentes, uma humana e outra divina. Suas ideias foram rebatidas e anatematizadas no Concílio de Éfeso em 431 d.C..
Em suma, podemos definir assim os três concílios supracitados: Niceia afirmou: Jesus é Deus; Constantinopla, por sua vez, declarou: Jesus é também plenamente homem; e finalmente Éfeso concluía com a união hipostática: Ele é plenamente Deus e plenamente homem, são duas naturezas integradas em uma única pessoa, a saber, Jesus Cristo.1
Além das controvérsias sobre a natureza de Cristo, houve alguma discussão sobre a expiação. Alguns diziam, equivocadamente, como foi o caso de Orígenes, que a expiação de Cristo fora um resgate pago a Satanás. Outros defenderam uma teoria mística, afirmando que Jesus venceu a própria natureza pecaminosa e que o conhecimento deste triunfo despertaria o ser humano. Isso sem contar aqueles que reduziram a expiação a um mero exemplo ou a uma influência moral.
Uma heresia contemporânea vinculada à expiação pode ser encontrada nos círculos do movimento neopentecostal. Proponentes como Hagin, Copeland e Milhomens ensinam que a expiação de Cristo só teria efeito pleno caso o Salvador morresse espiritualmente. Tal assunto tem sido palco de muitas dúvidas e confusões no meio evangélico, de modo que carece de maiores esclarecimentos. Diante do exposto, cabe a indagação: Jesus morreu espiritualmente?

Quais são os pressupostos para tal doutrina?
A ideia de que Cristo morreu espiritualmente é baseada em textos como 2 Coríntios 5.21; Mateus 27.46; Atos 13.33 e principalmente Salmo 16.10; Romanos 10.6,7; Efésios 4.8-10;  e 1 Pedro 3.18-20; 4.6. Romeiro resume essa doutrina da seguinte forma:

(…) ao morrer na cruz, Jesus recebeu uma natureza satânica, foi feito pecado, desceu ao inferno em nosso lugar e lá foi atormentado três dias e três noites pelo diabo. Jesus teve que morrer espiritualmente para pagar pelos pecados do homem no inferno, pois sua morte física e seu sangue derramado na cruz foram insuficientes para fazer a expiação. Depois de três dias no inferno, Jesus nasce de novo e derrota os poderes das trevas, completando no inferno a expiação que havia começado na cruz. O Jesus nascido de novo ressuscita e é elevado à mão direita do Pai. Hoje ele tem poder para devolver à Igreja tudo o que ela havia perdido para o diabo através da queda de Adão e Eva.2

Apesar das palavras assustadoras, podemos ver que Romeiro não está errado, visto que seus proponentes realmente fazem declarações consistentes com o que acabamos de ler. Kenneth Hagin, por exemplo, disse:

Seu espírito, seu homem interior, foi para o inferno em nosso lugar (…) A morte física não removeria os nossos pecados. Provou a morte por todo homem — a morte espiritual (…) A morte espiritual significa mais do que a separação de Deus. A morte espiritual significa ter a natureza de Satanás (…) Jesus se fez pecado. Seu espírito foi separado de Deus, e Ele desceu para o inferno em nosso lugar (…) Lá embaixo na masmorra do sofrimento — lá nos fundos do próprio inferno — Jesus satisfez as reivindicações da Justiça para todos nós (…) Deus no céu disse: ‘É suficiente’. Depois, O ressuscitou. Trouxe seu espírito e alma para cima, tirando-os do inferno.3

Kenneth Copeland, outro propagador do mesmo ensino comentou: “Uma vez que ele [Jesus] foi feito pecado, ele teve que pagar a pena pelo pecado. Teve de morrer espiritualmente, o que o levou às regiões dos perdidos, antes que ele pudesse nos redimir (…) Quando seu sangue foi derramado, ele não fez expiação”.4
Além dos dois proponentes já citados, vale citar uma representante nacional. Romeiro conta que Valnice Milhomens, fazendo um comentário de Isaías 53.9 5 durante um programa de televisão, afirmou que a palavra “morte”, no texto original, está no plural – “mortes” – o que significaria que Jesus morreu duas vezes, física e espiritualmente.6
Complementando todas essas informações, podemos citar E. W. Kenyon, o qual explica que a morte espiritual é “a natureza do adversário”7 e que, através dessa morte, Jesus se identificou com a humanidade. Segundo ele, Jesus tinha um corpo imortal e divino, não era como o corpo humano. Para que o sacrifício de Cristo fosse eficiente e eficazmente substitutivo, Jesus deveria morrer primeiro espiritualmente. “Era um corpo que não podia morrer até que o pecado possuísse o Seu espírito”.8

Jesus morreu espiritualmente?
Essa deveria ser uma pergunta retórica, visto que a Bíblia não abre nenhuma margem para uma resposta positiva. Apesar da obviedade, algumas interpretações inconsistentes têm sido propagadas e gerado dúvidas e confusões. Inequivocamente, Jesus não pode ter morrido espiritualmente e as razões são mais do que óbvias, conforme será explicado doravante.
Uma das argumentações para a morte espiritual de Jesus é a de que a ressurreição de Cristo deveria ser diferente das demais ocorridas no Novo Testamento, visto que o próprio Jesus operara três ressurreições. Entretanto, a diferença entre a ressurreição de Cristo e as de Lázaro, do filho da viúva de Naim e da filha de Jairo é que estes morreriam novamente, pois foi uma ressurreição para esta vida, ao passo que aquele, primícias dos que dormem, foi o primeiro a vencer a morte eternamente.
Os defensores da morte espiritual de Cristo desejam mostrar que, para que a expiação de Cristo fosse eficaz, Ele deveria morrer espiritualmente. O problema desta ideia é que “morte espiritual” pressupõe pecaminosidade. Portanto, Jesus teria que ter pecado para morrer espiritualmente. Lembrando as palavras supracitadas de Kenyon: “Era um corpo que não podia morrer até que o pecado possuísse o Seu espírito”.
McConnell explica que essa crença é uma interpretação grosseira do sacrifício substitutivo, cuja plataforma está em 2 Coríntios 5.21. Os sacrifícios realizados no Antigo Testamento tipificavam o que Jesus faria por nós, mas tais animais deveriam ser sem defeitos (cf Lv 4.3, 23, 32). “A pessoa que apresentava essas ofertas santas colocava a sua mão sobre os animais para simbolizar a transferência de seu pecado e culpa (Levítico 4.4, 24, 33). Essa transferência de pecado era simbólica e não literal”. McConnell assevera que “o animal sacrificial não se tornava pecado; o pecado era-lhe simbolicamente atribuído”.9
A teoria da expiação dos proponentes neopentecostais ainda não foi nomeada, mas pode facilmente ser catalogada como “teoria da identificação”. Assim como muitas teorias sobre a expiação não encontraram respaldo bíblico e foram consideradas como heréticas, a ideia de que Jesus se identificou com a humanidade e morreu espiritualmente segue a mesma trilha.
A Bíblia mostra que o salário do pecado é a morte (Rm 6.23) e que toda humanidade pecou e está destituída da glória de Deus (Rm 3.23). Portanto, para que Jesus morresse espiritualmente, teria que ter pecado, o que contradiz a própria Escritura: “Porque não temos um sumo sacerdote que não possa compadecer-se das nossas fraquezas; porém um que, como nós, em tudo foi tentado, mas sem pecado” (Hb 4.15 – grifos meus).
Pedro também disse: “(…) sabendo que não foi com coisas corruptíveis, como prata ou ouro, que fostes resgatados da vossa vã maneira de viver, que por tradição recebestes dos vossos pais, mas com precioso sangue, como de um cordeiro sem defeito e sem mácula, o sangue de Cristo (…)” (1Pe 1.18,19 – grifos meus). Não obstante, tal ideia vai de encontro com o que Paulo declarou: “Aquele que não conheceu pecado, Deus o fez pecado por nós; para que nele fôssemos feitos justiça de Deus” (1Co 5.21 – grifos meus).
O que dizer da natureza diabólica? Teria Jesus assumido em sua suposta “morte espiritual” a natureza de Satanás? O próprio Cristo contradiz tal hipótese: “Já não falarei muito convosco, porque vem o príncipe deste mundo, e ele nada tem em mim” (Jo 14.30 – grifos meus).

Jesus desceu ao inferno?
Para dar mais sentido à “teoria da identificação”, seus proponentes afirmam que Jesus desceu ao inferno e que foi atormentado pelo diabo por três dias. De acordo com eles, somente depois de ter cumprido essa pena – que seria nossa – é que Jesus pregou aos espíritos em prisão, tomou as chaves das mãos do diabo e foi, em seguida, ressuscitado.
Apesar dessa ordo resurrectio proposta pelos defensores da morte espiritual de Cristo, o clássico texto petrino sobre a descida de Jesus ao hades é claro ao afirmar que Cristo morreu na carne, e não no espírito, e que foi vivificado antes de pregar aos espíritos em prisão, o que deixa um problema significativo para a interpretação de que Jesus ficou no hades sendo torturado ou pagando pelos nossos pecados:
“Porque também Cristo morreu uma só vez pelos pecados, o justo pelos injustos, para levar-nos a Deus; sendo, na verdade, morto na carne, mas vivificado no espírito; no qual também foi, e pregou aos espíritos em prisão” (1Pe 3.18,19 – grifos meus).
O Rev. Heber Campos explica o significado da expressão “vivificado no espírito” em uma excelente abordagem sobre a “descendit ad inferna”. O texto é um dos mais interessantes sobre o assunto, e esgota-o completamente.10 Vejamos o que diz o texto:

A expressão ‘vivificado em espírito’, que possui similares em outros textos da Escritura, diz respeito à vitória de Cristo na ressurreição, combinando-se com o que Paulo diz em 1 Timóteo 3.16. Todavia, neste texto específico de 1 Pedro 3.19, o espírito vivificado ou vivificador pode ter mais significado se o entendermos como a natureza divina do Redentor, antes de ele encarnar-se. Ele vivia nesse estado de poder e não-limitação que contrasta com o estado de fraqueza em que esteve nos dias de sua carne, e foi neste tempo de não-limitação que ele foi e pregou aos espíritos em prisão, quando estes viviam no tempo de Noé.11

Outro texto utilizado para incrementar a descida ao hades é Lucas 23.43. Tradicionalmente, quem coloca uma vírgula no versículo em questão o faz com o intuito de defender o sono da alma, isto é, um estado de inconsciência post mortem. Todavia, os proponentes da “teoria da identificação” o fazem porque ficam em apuros. Se Jesus disse “hoje estarás comigo no paraíso”, como conciliar a ideia de que Cristo ficou padecendo três dias no Hades? Por isso pegam emprestada a ideia das Testemunhas de Jeová e dos Adventistas do Sétimo dia, que traduzem Lucas 23.43 da seguinte forma: “Em verdade te digo hoje, estarás comigo no paraíso”.
Tal texto é muito bem interpretado por Hendrikssen, o qual explica que o ex-ladrão fazia um pedido com expectativa longínqua, ao passo que Cristo mostra-lhe a instantaneidade de sua obra salvífica. Não era necessário aguardar muito tempo, a resposta era pontual: “hoje estarás comigo no paraíso”.12 A vírgula é descabida13 e só serviu para os defensores da morte espiritual de Cristo darem um “tiro no pé”.
É mister entender que Jesus não desceu ao inferno e tampouco tomou chaves das mãos do diabo. A ideia de que o inferno é um local governado por Satanás e que ele atormenta pessoas num caldeirão não passa de mera crendice popular. Não tem apoio bíblico. Inferno (geena no grego) é o local de tormento eterno (Mt 5.22,29,30) e é identificado com o lago de fogo (Ap 20.14,15). Jesus desceu ao hades, correspondente grego de sheol (hebraico). Hades14 é um lugar temporário, enquanto geena é definitivo.

Considerações finais
A doutrina chamada neste artigo de “teoria da identificação” afeta seriamente a cristologia e com maior perigo sua subárea, a expiação. Afirmar a morte espiritual de Cristo é, além de uma heresia, uma ideia blasfema. Tais ensinos não combinam com a ortodoxia e devem ser rejeitados pela comunidade cristã.
O sacrifício de Cristo na cruz foi suficiente e eficiente, pois Ele (Jesus), “subsistindo em forma de Deus, não julgou como usurpação o ser igual a Deus, mas esvaziou-se a si mesmo, tomando a forma de servo, tornando-se semelhante aos homens; e, achado na forma de homem, humilhou-se a si mesmo, tornando-se obediente até a morte [física], e morte de cruz” (Fp 2.6-8).
Por falar em cruz, foi lá mesmo que Jesus riscou “o escrito de dívida que havia contra nós nas suas ordenanças, o qual nos era contrário”, removendo-o do meio de nós. Ainda na cruz, Jesus despojou “os principados e potestades, os exibiu publicamente e deles triunfou” (Cl 2.14,15). Finalmente, na cruz, o Redentor declarou decisivamente: “Está consumado” (Jo 19.30).

Notas
____________________________________
1 REILY, Duncan. A História da Igreja. Imprensa Metodista, 1993, p.46.
2 ROMEIRO, Paulo. Supercrentes. Mundo Cristão, 1996, p. 58.
3 HAGIN, Kenneth. O Nome de Jesus. Graça Editorial, 1988, pp. 25-28.
4 KOPELAND Apud ROMEIRO, Paulo. Op. Cit., p. 59.
5 Is 53.9: “Designaram-lhe a sepultura com os perversos, mas com o rico esteve na sua morte.”
6 ROMEIRO. Op. Cit., pp. 60,61.
7 KENYON, E. W.. Realidades da nova criação: uma revelação da redenção. [s.n.: s. d.], pp. 51.
8 Idem. Identificação. [s.n.: s. d.], p. 13.
9 MCCONNELL, D. R.. A Differente Gospel. Hendrickson, 1988, pp. 126, 127.
10 A única observação a ser feita é sobre a interpretação da “descendit ad inferna” na tradição arminiana. Apesar da bibiografia usada pelo autor, não há uma interpretação unívoca na “tradição arminiana”. Muitos arminianos concordam com a exposição reformada que ele aborda no texto.
11 CAMPOS, Heber. “Descendit ad Inferna”:  uma análise da expressão “desceu ao hades” no cristianismo histórico. Fides Reformata, 1999,  4/1.
12 HENDRIKSSEN, William. Comentário do Novo Testamento: Lucas. Cultura Cristã, 2003, volume 2, pp. 658,659.
13 Ver a argumentação de GEISLER, Norman; RHODES, Ron. Resposta às seitas. CPAD, 2001, pp. 249,250.
14 Sheol/Hades é uma esfera de divisão territorial dicotômica – salvos e perdidos (cf Mt 11.23; 16.18; Lc 10.15; 16.23; At 2.27.31), sendo que o espaço daqueles é chamado de “Paraíso” e “Seio de Abraão”. Ambos os territórios são separados por um “grande abismo” (Lc 16.26), mas quando Jesus subiu aos Céus, levou consigo os ocupantes do Paraíso (Ef 4.8-10), deixando o Sheol/Hades intacto.



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