quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

10 considerações sobre o filme “Noé”

Estreado no Brasil em 21 de Março desse ano, o filme Noé já gerou polêmicas desmedidas antes mesmo de ter seu start up nos cinemas. Países islâmicos como Qatar, Indonésia, Malásia, Kuwait, Bahrein e Emirados Árabes, proibiram a exibição antes da estreia do longa. Tais nações tomaram essa ação radical em função da representação imprópria, de quem os muçulmanos consideram um de seus vinte e cinco profetas: Noé, cuja história é narrada na sunna 71 do Alcorão.
O filme, lançado pela Paramount Pictures, dirigido por Darren Aronofsky e produzido por Scott Franklin, prometia ser uma grande produção, com efeitos especiais e tecnologia 3D surpreendentes. O elenco é de primeira: conta com Russel Crowe no papel de Noé, Anthony Hopkins como Matusalém e Jennifer Connelly como a esposa de Noé. Além deles, estrelam no filme, Emma Watson como a esposa de Sem, Douglas Booth como Sem, Logan Lerman como Cam, Leo McHugh Carrol como Jafé e Ray Winstone como Tubal-Caim.
Em uma nota emitida pelo site oficial, durante a pré-estreia do longa, líamos que: “O filme é inspirado na história de Noé. Apesar de adquirida a licença artística, acreditamos que o filme é fiel à essência, valores e integridade da história que é pedra angular da fé de milhões de pessoas ao redor do mundo. A história bíblica de Noé pode ser encontrada no livro de Gênesis”.[1]
Apesar dessa nota e da expectativa de várias pessoas em relação à estreia, a fidelidade ao relato bíblico é completamente frustrante e essa enorme quantidade de desvios em relação à Bíblia, ofuscou todo brilho tecnológico e de efeitos especiais produzidos para a película. Se por um lado o filme trouxe grandes insatisfações, por outro rendeu 178,5 milhões de dólares em sua receita mundial, logo em sua primeira semana de estreia.

Outros filmes baseados na Bíblia
O filme “Noé”, lançado em 2014, não é o primeiro a conter erros estranhos às Escrituras. Com uma produção bem menos requintada, o longa-metragem “A arca de Noé”, lançado em 1999, dirigido por John Irvin e estrelado por John Voight, faz confusões bizarras a respeito da história bíblica.
Antes de Deus destruir a terra através do dilúvio, Voight, interpretando Noé, intercede por Sodoma e Gomorra, a fim de que o povo seja poupado. Ele pergunta: “Mas não há chance de salvá-la, Senhor?”. Deus pergunta: “Salvá-la?”. E Noé responde: “É a minha terra natal”. Então a divindade diz que se houver 50 pessoas honradas, as cidades impenitentes seriam salvas. Mas Noé pergunta: “Cinquenta? Não dá pra deixar por dez?”. Chega a ser hilária a confusão entre Noé e Abraão (cf Gn 18).
Em “A arca de Noé”, nem todas as pessoas morreram no dilúvio. Em certa ocasião, não apenas um navio pirata, mas quatro aparecem do nada tentando saquear e tomar para si a arca. O líder desse bando era Ló. Sim, isso mesmo, você não leu errado. Teria Aronofsky se inspirado nesse personagem quando pensou em Tubal-Caim?“A arca de Noé” seria cômico se não fosse trágico!
Em “Abraão, o pai da fé” (1993), é dito que Ló fez um ritual numa noite de lua cheia para que sua esposa engravidasse, algo não mencionado em toda a Bíbllia. A chamada de Abrão, na Bíblia, acontece após a morte de seu pai, Terá. No filme, entretanto, o pai ainda está vivo. Logo após a saída de Abraão de sua terra, ele encontra um escravo fugitivo da terra de Damasco, por quem paga alta quantia em favor de sua liberdade. Adivinhe quem é o escravo: Eliézer.
Quando Abraão chega a Canaã, encontra um povo que alega ser dono da terra. O líder deles diz que seus ancestrais cavaram-na e encontraram um rio, plantaram árvores e deixaram tudo da forma como Abraão encontrou. O referido filme, assim como os demais que serão citados, é cheio de ocorrências extra e anti-bíblicas.
O que falar de “Sansão e Dalila” (1996)? Dentre tantos equívocos, podemos citar a aparição de um “mensageiro” dando a notícia da gravidez à esposa de Manoá e não Cristo, na figura teofânica do Anjo do Senhor. Na mensagem, ele diz que o filho que nasceria seria “nazareno” ao invés de “nazireu”.
Outra curiosidade reside no fato de que, pela Bíblia, a mãe de Sansão corre e conta a seu marido tal experiência. Ele, ao invés de duvidar de sua esposa, suplica a Deus que para que envie novamente o homem que deu as boas novas (cf Jz 13.6,7). No filme, entretanto, Manoá age de forma cética e duvida da possibilidade de sua esposa ter um filho, visto ser ela estéril. A reaparição do Anjo do Senhor a Manoá é simplesmente ignorada no longa em questão.
Outro clássico é o filme “Os 10 mandamentos” (1956). Segundo o longa, Moisés teria destruído alguma cidade a pedido de faraó e ele obedientemente voltou em triunfo, enquanto era morador do Egito. Ele não seria apenas um líder militar, mas também um líder político, pois trouxe o rei da Etiópia para fazer aliança com o rei do Egito. Nefreti é uma linda moça egípcia, apaixonada por Moisés. Quando ela fica sabendo por uma senhora hebraica da origem mosaica, mata a mulher, a fim de encobrir a descendência de sua paixão.
Josué é uma figura interessante. Sua primeira aparição na Bíblia acontece no acampamento de Refidim, durante a batalha contra os amalequitas (cf Êx 17). No filme, porém, Josué é um escravo ousado, um herói hebreu. Depois de bater num mestre de obras egípcio, Josué é amarrado e está prestes a morrer, quando inesperada e heroicamente aparece Moisés, o qual mata o mestre de obras e enterra-o na areia, libertando Josué. Depois de vários anos, quando Moisés está vivendo em Midiã, Josué o chama para exercer seu chamado de libertador do povo hebreu do jugo egípcio.
Ainda de acordo com “Os 10 mandamentos”, Datã, aquele que liderou a rebelião contra Moisés no deserto, é um encarregado hebreu, em meio aos escravos conterrâneos. Uma situação, sem sombra de dúvidas, fantasiosa. Poderíamos enumerar várias outras incongruências, mas as que foram comentadas são suficientes.
Sabendo que tais filmes abusam da licença artística e propagam, em alguns casos, erros destruidores, qual deve ser a nossa reação perante tais obras cinematográficas? Será que devemos ser radicais como os muçulmanos que optaram por proibir a exibição do filme? Devemos agir com indiferença ou conformismo em relação aos erros deles? Ou podemos assumir uma posição mais equilibrada e moderada a respeito?

Como deve ser a nossa reação?
Trevin Wax fez uma boa abordagem a respeito desse questionamento. De acordo com ele, normalmente nos círculos evangelicais, acontecem dois tipos de reações: a crítica e a celebradora.[2]
Os críticos são fundamentalistas e estão mais preocupados com a precisão bíblica que o filme deve tomar. Esses críticos aparecem em blogs, sessões de comentários ou outros meios de comunicação a fim de expor os erros contidos nas obras. Ele caricatura esse grupo sugerindo a seguinte reação:
“Se é ‘Jesus, A História do Nascimento’, eles apontam que não sabemos se os sábios eram reis, ou se eles eram três; Se é ‘O Príncipe do Egito’, eles apontam que foi a filha de Faraó, não a sua esposa, que encontrou Moisés no rio; Se é ‘Os Dez Mandamentos’, eles nos lembram que não há registro bíblico de uma princesa egípcia dizendo “Mooiiiséééés, Moooiiséééééés!” tantas vezes; Se é a série do History Channel ‘A Bíblia’, eles apontam que a Bíblia não atribui movimentos ninjas aos anjos que ajudaram Ló a fugir de Sodoma.”
Em contrapartida, temos os celebradores. Eles reagem positivamente e se sentem lisonjeados em relação a qualquer película baseada na Bíblia, afinal, Hollyood está “anunciando a Palavra” indiretamente ou até mesmo “fazendo a Bíblia parecer legal”. Os filmes são usados até mesmo como ferramenta para evangelização. A caricatura desse grupo é assim pintada por Wax:
“Se é ‘Todo Poderoso’, eles começam uma discussão em grupo sobre como Deus pode ou não pode ser como Morgan Freeman; Se é ‘A Paixão de Cristo’, eles convidam seus amigos e vizinhos perdidos para um jantar e um banho de sangue; Se é ‘Homem-Aranha 3’, eles fazem uma série de sermões sobre vingança e a espiritualidade dos filmes de super-heróis. Não importa o quão ruim o filme possa ser, é melhor do que sequer abordar o tema. Faça o melhor que puder com um bom filme de Hollywood!”
Wax prossegue em sua abordagem mostrando que “os críticos estão certos em manter uma visão elevada da Bíblia e em julgar tudo pelo seu padrão”, bem como “à habilidade de um filme em solidificar figuras mentais e detalhes em nossa mente, quer elas reflitam bem a Bíblia ou não”. Ele também assevera que, os celebradores estão certos “em ver uma oportunidade sempre que Hollywood entra na onda bíblica”, afinal, é mais fácil “falar sobre coisas espirituais com os seus amigos e vizinhos quando milhões de pessoas estão afluindo para filmes com temas espirituais no fim de semana”.
Os erros das duas posições, segundo Wax, é ver como sacrílega a licença artística por parte dos críticos e esperar frutos espirituais que venham, não da Palavra, mas das telas, por parte dos celebradores. Sua conclusão é que, cristãos devem assistir ao filme “Noé” da mesma maneira que assistem a qualquer filme, usando de discernimento e sabedoria. Não se deve, segundo Wax, “fazer excessiva publicidade das falhas do filme e perder a oportunidade maior” e conclui, mostrando que, “não devemos ver o filme como o mais promissor método de evangelismo a aparecer hoje em dia, como se a Palavra de Deus precisasse de representação visual para maximizar o seu poder”.
A posição de Wax busca ser o mais moderada possível, entretanto, seu artigo foi escrito durante a pré-estreia. Seria interessante saber sua opinião posterior à exibição do filme. Não obstante, atendendo a uma análise biblicista de como deve ser nossa reação, podemos comentar três coisas:
1) A solução não é sermos radicais e proibirmos as pessoas de assistirem. A Bíblia não favorece posicionamentos extremistas. Não é pela força e nem pela violência que conseguimos convencer as pessoas. Aliás, a Bíblia diz que, “até importa que haja entre vós heresias, para que os que são sinceros se manifestem entre vós” (1 Co 11.19 - ARC).
2) A solução não é agirmos silenciosos, indiferentes ou acomodados. Não podemos nos conformar com este século (Rm 12.2) e nem mesmo sermos amigos do mundo (coisas corrompidas), pois nos tornaríamos inimigos de Deus (Tg 4.4). Todavia, isso não quer dizer que devemos fazer manifestações, sairmos com dizeres e placas condenando e tentando proibir a exibição, pois voltaríamos ao ponto 1.
3) Nosso posicionamento deve exprimir a insatisfação para com as heterodoxias contidas no longa, principalmente depois do fato dos produtores terem se comprometido em serem fiéis “à essência, valores e integridade da história que é pedra angular da fé de milhões de pessoas ao redor do mundo”. Devemos analisar, mas não discutir (no sentido pejorativo). Devemos “responder com mansidão e temor a todo aquele que (...) pedir a razão da [nossa] esperança” (1 Pe 3.15).
Embora a abordagem seja intrinsecamente relacionada aos protestos populares, são muito úteis as considerações do Dr. Augustus Nicodemus: “a maneira de a igreja influenciar e mudar a sociedade é, fundamentalmente, pela pregação do Evangelho de Cristo, chamando governantes e governados ao arrependimento de seus pecados e à conversão, pela fé, a Jesus Cristo. Mas, não somente isto! Devemos, também, ter em mente que, pelo procedimento e pelo exemplo, os cristãos se tornam sal e luz do mundo, quando suas obras de amor, arrependimento e fé são vistas pelos incrédulos.”[3]

A visão do diretor e os perigos dos erros cinematográficos
Miguel Bambieri Jr., comentarista cinematográfico da Veja, comenta que “Aronofsky foi ousado. Como o livro sagrado dá curtas pistas da história de Noé, o diretor imaginou o que teria ocorrido antes, durante e depois do dilúvio”.[4]É um argumento comum para a produção de filmes baseados em histórias bíblicas, porém, enquanto algumas cenas foram oriundas de imaginação, outras extravasaram a unidade doutrinária da Bíblia.
Aronofsky, em uma entrevista concedida ao Washington Post, é questionado sobre as “liberdades criativas” do filme e ele responde da seguinte forma: “Onde estão liberdades? Encontre-me uma contradição que não possa ser explicada. Claro que liberdades, quero dizer, nós estamos fazendo um filme. Se você ler os quatro capítulos onde ocorre a história de Noé, veremos que Noé nem sequer fala. Como você escala Russell Crowe e não o tem para falar? A esposa de Noé e suas três noras nem mesmo são nomeadas na Bíblia.”
Ele prossegue, dizendo: “Se você ler a história de Noé, é muito simples. O personagem de Noé apenas constrói a arca e recolhe os animais. Mas as lutas, o esforço de construir uma arca, de ser responsável por todos os animais, sendo responsável por sua família, não é totalmente explorado.[5] Apesar de entendermos que as lacunas precisam ser preenchidas para a produção de um filme, sabemos que existe a possibilidade de preenche-las sem tornar o longa anti-bíblico.
Cenas que contrariam um preceito ou história da Bíblia normalmente confundem as pessoas que se deparam com tais filmes. É o caso de “A última tentação de Cristo”. O longa, lançado em 1988, foi dirigido por Martin Scorsese e estrelado por Willem Dafoe, Harvey Keitel, Barbara Hershey e David Bowie. Apesar de renomados atores no elenco, o filme ilustra várias tentações em Cristo, como medo, dúvida, depressão e relutâncias.
Além dessas formas de tentação, o filme mostra Jesus imaginando-se envolvido em atividades sexuais e sugere que Ele quase chegou a ter um relacionamento sexual com Maria Madalena antes de iniciar sua vida monástica. A mulher adúltera de João 8.1-11, é interpretada como sendo Maria Madalena. Muitas pessoas até pregam e ensinam que era ela, baseadas no filme e não na Bíblia, que omite a identidade da mulher adúltera.
“A última tentação de Cristo” chegou a ser um pouco mais polêmico do que “Noé”. Grupos de cristãos tentaram boicotar a exibição dele nos cinemas e algumas lojas e locadoras de vídeo recusaram a presença deles em seus acervos. Alguns países proibiram sua exibição por muitos anos, como é o caso do Chile, que só liberou o longa após 15 anos de censura.
Martin Scorsese acabou trazendo em seu filme, uma espécie de concepção nestoriana de Cristo. Nestório chegou a ser Arcebispo de Constantinopla e viveu de 386 a 451. Ele ensinava que Jesus era hospedeiro de Cristo. No filme, Jesus é um marceneiro que faz as cruzes com as quais os romanos crucificam seus opositores. Ele vive atormentado por pesadelos e visões, desconhecendo o real significado dessas “alucinações” e se auto-flagelando por isso, até que foge para um mosteiro. Lá, ele tem uma visão decisiva e reveladora, e somente depois dela é que ele toma consciência do seu papel como o tão aguardado messias. O Jesus desse filme não passa de um profeta, um pecador nato. A Bíblia, entretanto, assegura-nos que Cristo tinha consciência de sua identidade ainda enquanto criança (cf Lc 2.49, 50).
Os erros dos filmes baseados na Bíblia induzem milhares de pessoas que não se preocupam em ler o livro Sagrado, a repassarem e até mesmo a acreditarem na história reproduzida nas telas. Alguns erros não chegam a afetar a ortodoxia cristã, mas, incongruências como as do filme “A arca de Noé” podem misturar as coisas nas cabeças das pessoas. Não obstante, a apresentação de um Deus mutável, sujeito a sombra de variações que tal filme passa, afeta a concepção de pessoas que não conhecem profundamente a divindade cristã.
O filme “Noé”, por sua vez, mostra a figura de um Deus malvado, completamente transcendente e não imanente. Vai de encontro com a profissão de fé cristã em relação ao criacionismo, mostrando o evolucionismo como parte da tradição da descendência de Noé. Transforma demônios, seres maus, em seres bons, heróis de renome que ajudaram não apenas Noé a construir a arca, mas a humanidade pré-diluviana. Aliás, são tantas distorções, que o maior perigo de tal filme reside na contribuição para o aumento do ceticismo. Se o amado leitor acha que é exagero, vejamos os 10 principais erros que o longa-metragem “Noé” apresenta:

Os erros do filme “Noé”
1) Depois que Caim mata seu irmão Abel, ele é acolhido por uma legião de guardiões. Esses guardiões são, segundo o filme, os anjos caídos e ajudaram a humanidade pré-diluviana na habilidade de trabalhar com metais e outros tipos de serviços afins. Segundo a Bíblia, Caim fugiu errante sobre a terra, mas não foi acolhido por anjos ou demônios e sim por parentes próximos. Além do mais, não foram outras formas de vida que auxiliaram o homem no desenvolvimento tecnológico, mas eles próprios iniciaram tais atividades (Gn 4.20ss);
2) Um dos maiores problemas do filme é apresentar os anjos caídos como seres injustiçados. O motivo pelo qual eles teriam sido expulsos, não é a rebelião luciferiana, mas uma suposta ajuda não liberada por Deus a Adão. A sensação que o filme passa é que Deus foi injusto com eles, pois só queriam ajudar. Sendo impedidos de prestar tal auxílio a Adão, tornaram-se enormes monstros de pedra, os nefilins de Gênesis 6 (que mais parecem os transformers). As Escrituras, entretanto, mostram que os anjos caídos são os demônios (Lc 11.14-20), não possuem natureza corpórea (Mt 10.1; 2 Co 11.14; Ap 16.13,14), não ajudam a ninguém (Jo 8.44; 10.10), são adversários de Deus e dos homens (Zc 3.1; At 13.9,10; 1 Pe 5.8) e que foram expulsos do céu em função de uma rebelião contra Deus (Lc 10.17-19; Ap 12.4-9);
3) Lameque, pai de Noé, teria morrido quando este ainda era pequeno, uma criança que partia para a adolescência. Além disso, eles viviam como que foragidos de uma raça completamente contaminada pela maldade. A impressão que dá inicialmente, é que, Aronofsky estava sugerindo mais uma teoria para o debate filhos dos homens x filhas de Deus de Gênesis 6, mas no decorrer do filme, percebe-se que não é isso. A Bíblia chama Noé de pregador de justiça (2 Pe 2.5) e mostra que as pessoas que rejeitaram a mensagem de Noé em seus dias estão aprisionadas no hades (1 Pe 3.18-20). Além disso, não há como abrir nenhum precedente para a ideia de um campo de refugiados, como o filme tenta passar. As pessoas moravam juntas em comunidade. Não obstante, o pai de Noé morreu cinco anos antes do dilúvio (Gn 5.30; 7.11);
4) A Bíblia não relata o tipo de relacionamento que Matusalém e Noé tiveram. Embora algumas pessoas possam pensar, de imediato, que os dois não foram contemporâneos, lemos que Matusalém morreu no ano do dilúvio, pois viveu 782 anos depois que gerou a Lameque, seu filho (Gn 5.25ss). No filme, Matusalém morre através do dilúvio e é uma possibilidade real, visto que a Bíblia silencia-se a esse respeito. A única ressalva é a forma como Matusalém vive: isolado numa montanha e protegido pelos “guardiões”. A impossibilidade desse fato é explicada nos tópicos anteriores. Outra possibilidade é a contemporaneidade de Tubal-Caim e Noé, pois na árvore de gerações, corresponde ao mesmo nível de Lameque (anexo 1). Apesar da possibilidade, a liderança do descendente de Caim é completamente imaginativa e bem mais ainda a sua sobrevivência ao dilúvio;
5) Durante a construção da arca, diga-se de passagem que era uma engenharia bem superior para a época, os anjos caídos ajudam Noé a edifica-la. Quando a chuva chega, os homens resolvem lutar a fim de tomarem a arca para eles, mas Noé e sua família é protegida e auxiliada pelos “guardiões” de pedra. O exército de rebeldes, liderado por Tubal-Caim, trava uma épica batalha contra os demônios. Aquelas enormes criaturas de pedra vão perdendo espaço tempo a tempo e quando uma delas está prestes a morrer, suplica pela misericórdia divina, que em sua estranha benignidade, acolhe o anjo caído ao lugar original de outrora. Depois desse, um a um vai retornando ao céu. A Bíblia, por outro lado, mostra que para os demônios, não há possibilidade de arrependimento e retorno celestial, antes, o lago de fogo e de enxofre fora preparado para o diabo e seus anjos (Mt 25.41; Ap 20.10);
6) A fim de contrariar a Bíblia, entram na arca apenas a esposa de Noé e seus filhos (Sem, Cam e Jafé). O único que tinha uma esposa era Sem. Cam bem que tentou, mas seu pai não deixou. De acordo com o filme, Noé havia entendido de Deus, que nem mesmo eles deveriam sobreviver. Como não poderiam mais procriar, arranjar mais esposas era algo inútil. A Bíblia, todavia, mostra que entraram oito pessoas na arca: Noé, a esposa, os três filhos e três noras (Gn 7.1, 13; 1 Pe 3.20);
7) Durante o dilúvio, Noé faz uma reunião familiar na arca e conta a eles o que seus descendentes ensinavam tradicionalmente. Enquanto ele vai contando a origem do mundo, as imagens da película vão passando gráficos de um evolucionismo misturado com a ideia do Big Bang: um peixe que vai se transformando em ave, outro peixe que vai se transformando em um animal que rasteja, que por sua vez vai se transformando em vários outros rastejantes e outros que se arrastam, passando por ruminantes, ursos e todos os tipos de animais, até chegar num macaco. Para completar o cúmulo do darwinismo, ficou faltando apenas o macaco se transformar num homem, embora a cena pareça sugerir isso. Essa ideia contraria completamente o criacionismo bíblico. As Escrituras não abrem espaço para esse tipo de cogitação!
8) Bem, não era para haver procriação, mas a esposa de Sem engravida. Quando ela vai dar a notícia para Noé, este fica tomado de ira e profere maldições de todo tipo. Sua conclusão é de que, se for menina morrerá assim que nascer, mas se for menino, será o último a morrer de velhice. Para loucura de Noé, nasce não apenas uma menina, mas gêmeas. Ele fica possuído de ódio e vai em busca do suposto cumprimento da ordenança divina de mata-las. Nenhum argumento de sua nora, esposa e filhos, é capaz de aplacar sua fúria. Indiscutivelmente, o Noé deste filme é um lunático, sanguinário e religioso fanático. Essa caricatura contradiz completamente a revelação bíblica. Não somente isso, a forma como as coisas vão se desenrolando, caricatura não apenas Noé, mas o próprio Deus como alguém severo, maligno, indiferente e egoísta, uma divindade fruto da imaginação humana;
9) A boa notícia é que Noé não matou as gêmeas. Ele ficou penalizado e tomado de compaixão. O filme faz parecer que Noé foi mais benigno do que Deus. Mas isso o levou a se sentir falho para com a divindade e afundou-se em uma profunda depressão. Depois que as águas baixaram, Noé abandonou a família e foi morar isolado numa caverna. Por lá, ele plantou uma vinha e se embebedava freneticamente. Pelo menos é assim que Aronofsky interpreta a passagem de Gênesis 9.20-28. Para piorar a imagem noética, só ficaram faltando as palavras imprecatórias ao neto Canaã. Mas, como Cam não era casado no filme, não teve como passar essa ideia;
10) Por último, mas não menos importante, o filme é um tanto quanto místico. Noé recebe seu chamado de uma forma bastante esquizofrênica. Ele tem visões, sonhos, inquietações e alucinações mostrando-lhe a destruição em massa. Em outro trecho, Matusalém coloca a mão no ventre da esposa de Sem e ela, que segundo o filme era estéril por causa de um ferimento que os rebeldes fizeram-na enquanto criança, recebe uma experiência sobrenatural e é curada por uma força ativa. Sem falar da pele da serpente que os homens carregavam. Essa pele era um direito da linhagem de Sete e continha poderes mágicos. Contudo, como uma relíquia oriunda da serpente, símbolo do mal, poderia ser herança da linhagem piedosa de Sete?

Considerações finais
O filme possui inúmeras outras inconsistências que não foram abordadas. O presente artigo não pretendeu analisar a película sob o olhar de um crítico de cinema, mas segundo a visão bíblica, partindo de uma premissa judaico-cristã. Conforme vimos anteriormente, em uma nota oficial, a equipe de produção do longa publicou que, “o filme é fiel à essência, valores e integridade da história que é pedra angular da fé de milhões de pessoas ao redor do mundo”. Todavia, ele deixou a desejar nos três quesitos que se propôs ser fiel: essência, valores e integridade da história.
Sua infidelidade à essência pôde ser vista na inversão de valores que a obra faz de Deus e do próprio Noé. Ela faz de anjos caídos (demônios), seres benevolentes e injustiçados e torna a graciosidade de Deus em malevolência. Se a história bíblica deseja mostrar o favor imerecido de Deus frente à impiedade humana, o filme mostrou o contrário: um Deus vingativo, mal e que não se importa com ninguém. Absolutamente, o “Criador”, citado no filme, não é o Deus das Escrituras Sagradas e tampouco o Noé, interpretado por Crowe, é o Noé da Bíblia.
A infidelidade aos valores pode ser verificada nos discursos apregoados pelo sistema judaico-cristão. Noé é um exemplo de homem piedoso, alguém que andava na contramão do mundo de sua época. Por isso é que ele achou graça aos olhos de Deus. Contudo, o Noé do filme não passa de um lunático, de um religioso fanático. O perfil noético proferido no filme, nem de longe se enquadra no testemunho escriturístico (cf Ez 14.14-20; 2 Pe 2.5; Hb 11.7). Além disso, o filme fere valores cristãos quando tenta conciliar o evolucionismo com o criacionismo.
A infidelidade à integridade da história nem sequer precisa de muitas explicações, tendo em vista toda uma sessão do presente artigo que foi dedicada às incongruências do filme em relação à história narrada na Bíblia. Os efeitos especiais, a tecnologia empregada, o estrelato do elenco, dentre tantas coisas que poderiam tornar o filme em uma mega produção, simplesmente tiveram seus brilhos ofuscados pela pérfida versão que foi transmitida no longa-metragem “Noé”, que passou em questão de minutos de fantástico para esdrúxulo.

Anexo 01 – Genealogia das primeiras gerações após Adão







Notas



[1] LEE, Morgan. 'Noah' Movie Director Denies Controversy, Says Film Will Challenge Preconceptions Non-Believers Have About Bible Movies. Disponível em: http://www.christianpost.com/news/noah-movie-director-denies-controversy-says-film-will-challenge-preconceptions-non-believers-have-about-bible-movies-115787/. Acesso em 12 de Abril de 2014.
[2] WAX, Trevin. Como os cristãos devem reagir ao filme Noé? Disponível em: http://voltemosaoevangelho.com/blog/2014/04/como-os-cristaos-devem-reagir-ao-filme-sobre-noe/. Acesso em 16 de Abril de 2014.
[3] NICODEMUS, Augustus. O Cristão pode participar dos Protestos Populares? Revista Defesa da Fé, ano 13 - n° 104, Julho / Agosto de 2013, p. 39.
[4] BARBIERI, Miguel. Noé: licenças e diferenças entre o filme e a Bíblia. Disponível em: http://vejasp.abril.com.br/blogs/miguel-barbieri/2014/04/03/noe-filme-biblia-diferencas-licencas/. Acesso em 14 de Abril de 2014.
[5] BAILEY, Sarah Pulliam. A conversation with ‘Noah’ director Darren Aronofsky. Disponível em: http://www.washingtonpost.com/national/religion/a-conversation-with-noah-director-darren-aronofsky/2014/03/28/8c469388-b46d-11e3-b899-20667de76985_story.html. Acesso em 14 de Abril de 2014.





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