Embora Deus seja justo e fogo
consumidor, esses atributos são muito diferentes de ódio. É preciso
diferenciarmos a ira de Deus de ódio. Ira é um sentimento natural, algo
espontâneo, uma espécie de mecanismo emocional para externar nossa indignação
ou insatisfação com algo. A ira não é pecado, mas existe limite para a mesma. Se
ela sair do controle pode fazer com que cometamos atos impensados e fatais.
Podemos citar dois exemplos bíblicos sobre isso: o primeiro é o caso de Jesus
com os cambistas que ficavam no templo. Nosso Mestre ficou tão indignado que
derrubou mesas, cadeiras e expulsou os negociantes que ali estavam (Mt
21.12,13). O segundo exemplo consta em Efésios 4.26: “Irai-vos, e não pequeis;
não se ponha o sol sobre a vossa ira.” Como se pode ver, irar não é pecado, mas
existe um limite que deve ser controlado por nossa inteligência emocional, isto
é, nosso domínio-próprio (Gl 5.22,23).
Já o ódio é algo completamente
diferente. Trata-se de um sentimento que ultrapassou o limite da ira e faz com
que o indivíduo fique nutrindo maus desejos contra outrem. O ódio faz com que a
pessoa fique planejando alguma vingança, ou que fique maquinando o mal contra
terceiros. O ódio deixa de ser natural e passa a ser uma forma de tramar
conscientemente o mal. Por isso, Deus não pode odiar, pois isso faria com que
Ele tomasse decisões malignas e pecaminosas. As Escrituras dizem claramente que
Deus amou o mundo ao invés de “odiou o mundo.”
É óbvio que existem inúmeras referências
bíblicas de Deus odiando algo ou alguém, mas o sentido desse ódio tem a ver com
indignação, com o repúdio de certas práticas, com detestar a iniquidade e com o
ficar aborrecido com aquilo que é pecado. O verbo odiar em hebraico é sānê e ocorre 147 vezes no Antigo
Testamento com suas derivações. Citando alguns exemplos, podemos abordar
Malaquias 2.16 onde diz que Deus odeia o divórcio. Odiar o divórcio tem sentido
de repudiar esse ato e não de nutrir um sentimento vingativo contra tal ato. O
mesmo acontece em Provérbios 8.13, onde é dito que a soberba, a arrogância, o
mau caminho e a boca perversa são odiados. Em Amós 6.8 Deus odeia os palácios
de Jacó e sua soberba. Jeremias 44.4 mostra que Deus odeia a idolatria.
Finalmente, Malaquias 1.3 diz que Deus
odiou a Esaú. Será que Deus odiou a Esaú no sentido de nutrir uma ira
compulsiva, fora dos limites? Um ódio que leva alguém a maquinar uma vingança,
conforme descrito mais acima? Certamente que o sentido de “odiar” em Malaquias
se refere a Deus estar aborrecido com a desobediência dos Edomitas e não com
Esaú propriamente dito. As evidências de que Deus não está falando do indivíduo
Esaú são inúmeras. Em primeiro lugar, o contexto imediato: no versículo 1 é
dito que a palavra é dirigida a Israel (nação). No verso 2 os israelitas
questionavam quando alguém dizia que Deus os ama e para dar a constatação desse
amor o Senhor fala metaforicamente que amou a nação de Israel, representada
pelo patriarca Jacó, e aborreceu-se de um povo que saiu da mesma descendência
abraâmica, a saber, os edomitas (representada por Esaú). De onde vem a causa
desse repúdio? Explico nas linhas abaixo:
Os hebreus passaram maus bocados no
Egito enquanto serviram como escravos por 430 anos. Após serem libertos,
seguiam rumo à terra prometida guiados por Moisés. Para chegarem ao destino,
precisavam passar pela terra de Edom e Moisés enviou mensageiros solicitando
passagem. Em sua mensagem, Moisés até apelou para o argumento fraternal,
dizendo: “Assim diz teu irmão Israel: (...) Deixa-nos passar pela tua terra”
(Nm 20.14,17). Moisés promete que os hebreus não comeriam nada da terra de Edom
e que nem mesmo a água deles beberiam.
Mas, os descendentes de Edom (Esaú) não
foram solícitos quando o povo hebreu precisou atravessar a terra deles. Pelo
contrário, a resposta do rei dos edomitas foi que eles não podiam passar por
lá, pois se o fizessem seriam atacados (Nm 20.18). Moisés até tentou
contra-argumentar, pedindo mais uma vez com a promessa de que se alguém
descumprisse o acordo e comesse ou bebesse, que os hebreus dariam seu gado como
compensação (Nm 20.19). Mas Edom foi incisivo em sua resposta: “Não passarás!”
Além da resposta áspera, eles saíram “ao encontro [dos hebreus] com muita gente
e com mão forte” (v.20). Mesmo com tal ato de covardia, Deus prescreve que os
hebreus não fizessem o mesmo. Ao invés disso, Ele disse em ocasião posterior:
“Não rejeitem o edomita, pois ele é seu irmão.” (Dt 23.7).
Deus abomina esse tipo de tratamento,
afinal, “Quem sabe que deve fazer o bem e não o faz, comete pecado” (Tg 4.17).
Os edomitas foram insensíveis e bárbaros, cometeram terrível crueldade, mas
Deus, em sua justiça, puniria Edom fazendo-os servos de Israel. Essa profecia
foi feita pela primeira vez enquanto Rebeca estava grávida: “Duas nações estão
em seu ventre, já desde as suas entranhas dois povos se separarão; um deles
será mais forte que o outro, mas o mais
velho servirá ao mais novo” (Gn 25.23 – grifos meus).
A segunda vez em que essa profecia foi
dita ocorreu quando Balaão empreendeu um esforço inútil lançando feitiços
contra Israel. Deus revela que “Uma estrela surgirá de Jacó; um cetro se
levantará de Israel. Ele esmagará as frontes de Moabe e o crânio de todos os
descendentes de Sete. Edom será dominado; Seir, seu inimigo, também será
dominado, mas Israel se fortalecerá.” (Nm 24.17,18).
As duas profecias se cumprem nos dias de
Davi, quando seu exército travou uma batalha sangrenta e matou dezoito mil
soldados de Edom no Vale do Sal “sujeitando todos os edomitas a Davi” (1 Cr
18.13; 2 Sm 8.14). Paulo chega a citar a primeira profecia em Romanos 9.12. Os
calvinistas gostam de Romanos 9 e com toda freqüência alegam que este capítulo
trata da eleição individual, mas o texto claramente fala acerca de nações e não
indivíduos. Em outras palavras, trata da eleição corporativa e não individual.
Um das evidências disso é o que o versículo que destaquei diz: “O maior servirá
o menor.” (Rm 9.12). Sabemos que o maior (Esaú) nunca serviu ao menor (Jacó)
enquanto viveu. A profecia dizia respeito às nações, conforme vimos neste
parágrafo, quando os edomitas foram sujeitos a Israel.
Outro texto prova de que os edomitas se tornaram
servos de Israel encontra-se nas passagens paralelas de 2 Rs 8.20 e 2 Cr 21.8:
“Nos dias de Jeorão, os edomitas rebelaram-se contra o domínio de Judá,
proclamando seu próprio rei.” Quando os judeus enfrentavam o cativeiro
babilônico, os edomitas se deleitavam nesse momento trágico e desejavam que
eles fossem completamente destruído. Esse episódio é dito no Salmo 137.7:
“Lembra-te, Senhor, contra os edomitas, do dia de Jerusalém, porque eles
diziam: Arrasai-a, arrasai-a até os seus alicerces.” Em função dessa rebelião,
as Escrituras apresentam profecias imprecatórias posteriores contra Edom. São
elas:
Assim diz o Senhor
Deus: Pois que Edom se houve vingativamente para com a casa de Judá, e se fez
culpadíssimo, vingando-se deles. 13 portanto assim diz o Senhor Deus: Também
estenderei a minha mão contra Edom, e arrancarei dele homens e animais; e o
tornarei em deserto desde Temã; e cairão à espada até Dedã. E exercerei a minha
vingança sobre Edom, pela mão do meu povo de Israel; e farão em Edom segundo a
minha ira e segundo o meu furor; e conhecerão a minha vingança, diz o Senhor
Deus. (Ez 25.12-14)
O Egito se tornará uma
desolação, e Edom se fará um deserto assolado, por causa da violência que
fizeram aos filhos de Judá, em cuja terra derramaram sangue inocente. (Joel
3.19)
Assim diz o Senhor:
Por três transgressões de Tiro, sim, por quatro, não retirarei o castigo;
porque entregaram todos os cativos a Edom, e não se lembraram da aliança dos
irmãos. (...) Assim diz o Senhor: Por três transgressões de Edom, sim, por
quatro, não retirarei o castigo; porque perseguiu a seu irmão à espada, e baniu
toda a compaixão; e a sua ira despedaçou eternamente, e conservou a sua
indignação para sempre (Am 1.9,11)
Para concluir essa seção, reforçamos que
a idéia de que Deus ame alguns para a salvação e odeie outros para a perdição
não coaduna com as Escrituras, afinal, elas revelam que Deus não tem prazer na
morte do ímpio (Ez 33.11). A missão de Cristo reforça que Ele veio salvar o que
se tinha perdido (Mt 18.11; Lc 19.10) e que Deus enviou o seu Filho ao mundo,
não para que condenasse o mundo, mas para que o mundo fosse salvo por ele (Jo
3.17).
Em seu sermão Livre Graça, Wesley dizia: “nenhuma passagem bíblica diz que Deus
não é amor.”[2]
Armínio enfatiza isso em seus debates com William Perkins e Gomaro, afirmando:
“Nenhuma criatura racional foi criada por Deus com essa intenção, para que
sejam condenadas.”[3] O remonstrante Simão Episcópio reforçou a
mesma idéia quando declarou que Deus não pode desejar causar o mal porque “Ele
é o bem supremo, tanto em si mesmo como também para suas criaturas.”[4]
Notas
[1] Este texto é um
excerto da obra: COUTO, Vinicius. Em
favor do Arminianismo-Wesleyano: um estudo bíblico, teológico e exegético de
sua relevância na contemporaneidade. São Paulo: Reflexão, 2016.
[2] WESLEY, John. Op. Cit., Livre
Graça.
[4] EPISCOPIUS, Simon. Confession of
Faith of those Called Arminians. Londres: Heart & Bible, 1684, pp.84,85.