NÃO SOU ARMINIANO E
NEM CALVINISTA, SOU BÍBLICO
Resumo
A
teologia arminiana é, ainda, mal compreendida no Brasil. Não bastasse a má
compreensão em função da falta de acesso bibliográfico, da desonestidade
intelectual, da ojeriza ao estudo teológico formal e da teologia popular,
existe, ainda, uma visão falaciosa de que se identificar com determinado
sistema soteriológico torna a pessoa menos bíblica ou até mesmo seguidora de
homens. Isto posto, o presente artigo se preocupa em elucidar as questões que
envolvem o assunto. A alegação de que ser arminiano ou calvinista é deixar de
ser bíblico para lançar mão de interpretações humanas é uma falácia lógica.
Ademais, o presente artigo também quer demonstrar que, mesmo o arminianismo e o
calvinismo sendo bíblicos, não existe bipolaridade soteriológica. Isto é, a
doutrina da salvação não está limitada a esses dois pólos. Sendo assim,
apresentaremos algumas das posições que estão em conformidade com a ortodoxia
evangélica, bem como as que não estão em harmonia.
Palavras-chave:
Arminianismo – Calvinismo – Bíblico – Falácia lógica
Abstract
Arminian theology is still misunderstood in Brazil. The
lack of bibliographic access, the intellectual dishonesty, the aversion to
formal theological study and the popular theology are some of the reasons for
this misunderstood. Beyond them, there is also a fallacious view that identify
with certain soteriological system makes the people less biblical even follower
of men. That said, this article is concerned with elucidating the issues
surrounding it. The claim that an Arminian or Calvinist is no longer biblical
to resort to human interpretations is a logical fallacy. In addition, this
article want to demonstrate that even Arminianism and Calvinism is biblical, and
there is not salvific bipolarity. This is, the doctrine of salvation is not
limited to these two poles. Thus, we present some of the positions that are in
line with evangelical orthodoxy and those that are not in harmony.
Keywords: Arminianism - Calvinism - Biblical - Logical
Fallacy
Introdução
Atualmente existem muitas pessoas que hesitam
em se posicionar soteriologicamente. A principal frase que temos ouvido no
evangelicalismo brasileiro sobre essa hesitação é que, “não sou arminiano e nem
calvinista, sou bíblico.” O presente artigo se preocupa em mostrar que essa
frase constitui uma falácia lógica e apresentar as razões pelas quais ela está
equivocada. Para tanto, daremos uma olhada no conceito de falácia lógica e
mostraremos que o texto bíblico usado para defender essa ideia, também acaba
recaindo numa falácia, pois é utilizado fora de seu sentido original e fora de
seu contexto.
O artigo ainda apresenta que ser arminiano ou
calvinista não implica em seguir integralmente as ideias dos teólogos que levam
seus nomes, a saber, Jacó Armínio e João Calvino, mas sim na identificação da
interpretação envolvida na relação criação
– queda – redenção. Para essa análise, serão abordadas algumas doutrinas
rudimentares da fé cristã, bem como um movimento hegemônico do evangelicalismo
mundial, o pentecostalismo. A ideia é mostrar que não é possível fugir dos
rótulos e que esses rótulos teológicos não fazem com que quem adere a eles seja
seguidor de homens, ou menos bíblico. Finalmente, nossa preocupação é mostrar
que a soteriologia não está limitada à bipolaridade, isto é, apenas aos
círculos arminiano e calvinista, pois existem outras opções.
A
posição do autor do artigo
Antes de mais nada, quero deixar clara a
minha posição soteriológica. Sou arminiano-wesleyano. Tenho duas obras
publicadas pela editora Reflexão que tratam do assunto. A primeira se chama Introdução ao arminianismo-wesleyano.
Ela foi publicada em 2014 e trata-se de um estudo comparativo entre o
pensamento arminiano e calvinista. Não é um livro de apologética polemista. A
preocupação não é refutar textos calvinistas, embora em alguns momentos isso
acabe sendo necessário, principalmente porque os nossos irmãos calvinistas
acabam dizendo inverdades sobre o arminianismo, rotulando-o de pelagianismo ou
de semi-pelagianismo.[2]
A segunda obra acabou de ser lançada
(Setembro de 2016). Seu título é Em favor
do arminianismo-wesleyano: um estudo bíblico, teológico e exegético de sua
relevância na contemporaneidade. Trata-se de uma obra mais completa do que
a primeira, que fechou com 110 páginas e visa dar apenas o alicerce dos
rudimentos do pensamento armínio-wesleyano. A última obra, entretanto, procura
fazer uma viagem mais profunda. Ela é dividida em oito capítulos. No primeiro
temos uma apresentação histórica. O objetivo é mostrar um pouco do que os pais
da igreja pensaram sobre a questão de livre arbítrio. Concluímos que os pais da
igreja não foram nem arminianos e nem calvinistas (o anacronismo é necessário
aqui), mas é visível o desenvolvimento teológico no meio dos pais da igreja
sobre depravação e graça. Ainda na parte histórica, temos uma breve biografia
de Jacó Armínio e de John Wesley, dois dos principais expoentes do pensamento
que carrega o nome de ambos.
Os cinco capítulos seguintes se encarregam de
trabalhar os axiomas arminianos (depravação total, eleição condicional, graça
preveniente, expiação ilimitada e perseverança dos santos), com maior ênfase no
desdobramento wesleyano. No capítulo sobre depravação total, mostramos as bases
bíblicas e as fundamentações teológicas do assunto. Algo muito importante sobre
esse ponto é a compreensão da criação do homem à imagem de Deus e o
entendimento da corrupção dessa imagem sofrida com a queda. Essa compreensão é
basilar para compreender a doutrina da perfeição cristã ou da inteira
santificação wesleyana. O capítulo que versa sobre a eleição leva em
consideração os aspectos condicional, corporativo, presciente, predestinista e
amoroso da eleição. Há vasta exegese nesse capítulo, principalmente sobre
Romanos 9.
No capítulo sobre a graça preveniente, há uma
explicação, em primeiro momento, sobre o que é graça, e que a adjetivação
preveniente é apenas uma forma de apresentar uma das ações dessa graça, afinal,
graça é uma só, mas possui operações circunstanciais peculiares, como a graça
comum, por exemplo. Sendo assim, o livro apresenta a ordo salutis armínio-wesleyana numa perspectiva dos estágios da
graça (graça preveniente, graça convencedora, graça justificadora e graça
santificadora). Na sequencia, abordamos a expiação. Para entendermos sua
extensão, antes de mais nada, explicamos o que significa a palavra “expiação” e
quais são as outras palavras correlatas do novo e do antigo testamento.
Abordamos, ainda, a exegese dos textos bíblicos que falam sobre a extensão
dessa expiação e tratamos desse axioma como sendo um dos principais pontos
fracos da soteriologia calvinista, tanto que ele divide a opinião dos teólogos
calvinistas para uma segunda linha, o calvinismo de quatro pontos, também
conhecido como amiraldismo. Nesse ínterim, defendemos a posição de que Armínio
tenha sido calvinista e que após a controvérsia com Koornhert é que a posição
do professor holandês muda. Esse argumento, inclusive, fortalece a ideia do
calcanhar de Aquiles. Além de tudo isso, ainda levamos em consideração a
problematização dos pecados pagos duas vezes.
O último axioma a ser tratado é sobre a
questão da perseverança dos santos, ou a segurança da salvação. Mostramos, em
primeiro lugar, a posição de Jacó Armínio e a controvérsia que envolve esse
caso. Embora haja pensadores que sejam favoráveis a uma defesa da possibilidade
de apostasia em Armínio (Keith Stanglin, Robert Picirilli, Wellington Mariano,
etc), estou ao lado de Roger Olson nesse quesito e entendo que ele não se
posicionou nem a favor e nem contra a possibilidade de apostasia,
manifestando-se de maneira ambígua.[3]
Uma das contraprovas disso é a evolução do pensamento dos remonstrantes, que em
1610 publicam, em um de seus artigos, que essa questão (da possibilidade de
apostasia) deveria ser melhor estudada. Oito anos mais tarde, no mesmo ano do
Sínodo de Dort, é que eles (os remonstrantes) se posicionam a favor da
possibilidade. As ideias dos remonstrantes de 1618 estão escritas no nosso
anexo dois do livro. De qualquer forma, o capítulo ainda se preocupa bastante
em trazer textos bíblicos à tona e em fazer a exegese dos mesmos.
A obra finda com mais dois capítulos (sétimo
e oitavo) e dois anexos. O sétimo capítulo versa sobre a questão da soberania
de Deus. O arminianismo não nega essa soberania, apenas entende, diferentemente
do calvinismo, que Deus estar no controle de tudo, não é sinônimo de controlar
meticulosamente todas as coisas. Partindo desse pressuposto, analisamos a
correlação da soberania divina com o livre-arbítrio, com a responsabilidade
humana e com a providência divina. Não obstante, sabemos que existem outras
tentativas de correlacionar esses itens e, por isso, apresentamos também na
obra. São eles: o compatibilismo, o molinismo e o teísmo aberto, sendo que
apresento este como uma opção heterodoxa.
O último capítulo se preocupa em mostrar que
a teologia armínio-wesleyana é mais ampla e pode ser mais relevante se
trabalharmos com ela de maneira mais holística. Existe a possibilidade de
trabalharmos uma cosmovisão e dialogarmos, a partir da esfera
armínio-wesleyana, com questões da sociedade, tais como saúde, ecologia, ética,
justiça social, sexualidade, educação e vários outros temas. O ponto chave
disso é o entendimento da restauração da imagem de Deus. O primeiro anexo segue
para reforçar essa ideia e apresentamos as perspectivas existentes sobre o
relacionamento entre o cristão e a cultura. Wesley, ao lado de Agostinho, Calvino
e Kuyper, entende que a igreja é uma agente de transformação. Sendo assim,
podemos trabalhar nossos alicerces teológicos e buscar produzir uma teologia
que vise maior relevância no contexto contemporâneo.
Desconstruindo
a falácia lógica
Antes de prosseguirmos, é importante explicar
o significado da expressão “falácia lógica.” Copi explica que falácia é “uma
forma de raciocínio que parece correto, mas que, quando examinada
cuidadosamente, não o é.”[4]
Trata-se de uma ideia aparentemente bem construída, com fundamentações e
delineações. Entretanto, algo de errado está inserido em meio ao raciocínio ou
à conclusão. A análise dos postulados, das premissas, das evidências,
fundamentações e até mesmo da dedução pode desconstruir a ideia que aparenta
ter veracidade.
Lógica, por sua vez, é algo que remonta à
Grécia Antiga. Cunha e Machado explicam que a lógica tem origem com
Aristóteles, entre os séculos IV e V a.C., além de ser usada pelos filósofos a
fim de analisar quais argumentos eram bons e quais eram ruins e, assim,
persuadir o outro lado a mudar de ideia.[5]
Partindo desse pressuposto analítico, a lógica passou a ser “um instrumento
para raciocinar e para preservar a consistência.”[6] Em
contrapartida, raciocinar é o ato de se ocupar com “o processo de compreender,
revisar ou reforçar suas crenças.”[7]
A lógica, portanto, é a ferramenta que usamos
para buscar a compreensão, a revisão ou o reforço de nossas ideias a fim de
verificar se há ou não consistência em alguma premissa. Essa verificação pode
ser realizada através da dedução (conclusões obtidas através de premissas),
indução (conclusões que podem ir além das premissas), teoria de modelos
(comparações com modelos hipotéticos) e metateoria (são as provas a respeito
das provas).[8]
De uma forma mais simples, a falácia lógica
nada mais é do que uma conclusão que foi obtida através da verificação
dedutiva, indutiva, comparativa hipotética e/ou metateórica a respeito de
alguma ideia ou crença. A conclusão parece estar correta, mas quando é examinada
com mais cautela, pode-se perceber seus erros e fraquezas. Champlin e Bentes
explicam que a falácia lógica ignora os fatores condicionadores e confunde-os
com aquilo que é essencial.[9] É
o caso da afirmação “não sou arminiano e nem calvinista, sou bíblico.” Num
primeiro momento ela transparece piedade, obediência à Palavra de Deus e um
retorno ao princípio reformado Sola
Scriptura. Entretanto, ela não passa de um equívoco sobre o que é ser
arminiano ou calvinista e também do que é ser bíblico.
A primeira questão a ser analisada é: as
soteriologias arminiana e calvinista não são bíblicas? A pergunta nasce da
própria conclusão da afirmação de que não sou nem um nem outro, “sou bíblico.”
Essa afirmativa já aponta que os dois sistemas em questão não são bíblicos e
acaba assumindo uma postura de arrogância. Mas, o que é ser bíblico? Algo que
muitos confundem é achar que para ser bíblico é preciso haver uma conformidade
literal com as Escrituras no uso de terminologias e nomenclaturas. Essa postura
não é “bíblica” e sim “biblicista.” Champlin e Bentes explicam que biblicismo
“é o nome que se dá à insistência de usar a Bíblia para solucionar todos os
problemas teológicos, morais e filosóficos, ou, pelo menos, o uso da Bíblia
para determinar o valor da verdade que há nessas questões.”[10]
Desta forma, a frase mais adequada seria: “não sou arminiano e nem calvinista e
sim biblicista.”
Se o biblicismo fosse verdadeiro, então
termos muito comuns nas homilias cristãs deveriam ser anatematizadas, tais como
Trindade, pecado original, onipotência, onipresença, onisciência, providência,
graça comum, etc. E até mesmo questões morais e jurídicas, tais como masturbação,
suicídio, legítima defesa, roubo e furto, etc. A liturgia cristã também deveria
ser totalmente revisada, afinal, instrumentos como baterias, guitarras,
contrabaixos e outros não se encontram nas Escrituras. O púlpito não é algo
usado pelos primeiros cristãos, aparelhagens de som, microfones e até mesmo data-shows deveriam ser eliminados dos
cultos, pois não estão nas orientações cúlticas do novo testamento. Outrossim,
haveria um enorme problema quanto à não proibição do uso de drogas, visto que
não há nenhuma referência bíblica a esse respeito.
Ser bíblico, portanto, não é usar literalmente
as expressões oriundas da Bíblia e sim estar em harmonia com os ensinos dela.
Embora a palavra Trindade não ocorra nas Escrituras, seu significado está
presente em todo o livro sagrado. O mesmo ocorre com as expressões teológicas
usadas no parágrafo anterior, bem como os termos de cunho moral e jurídico e
com as questões litúrgicas. Bíblico, conforme qualquer dicionário da língua
portuguesa, significa algo proveniente da Bíblia ou relativo a ela.
Diante disso, as soteriologias arminiana e
calvinista não seriam bíblicas? A resposta é que elas são, sim, bíblicas. Elas
se preocupam em trabalhar a criação, a queda e a redenção, a partir daquilo que
as Escrituras revelam. No primeiro ponto, ambas entendem que Deus criou a terra
e as demais coisas como boas. Ademais, criou o homem, corolário da criação,
como bom também. Todavia, a queda afetou a imagem de Deus na humanidade e
corrompeu-o totalmente. A essa corrupção chamamos de depravação total, e é um axioma convergente em ambas as teologias.
É claro que existem diferenças mínimas na extensão dessa corrupção nos dois
sistemas, mas ambos se baseiam nas Escrituras para explicar o nível de
corruptibilidade.
Outra diferença entre ambos os sistemas
reside no modus operandi da redenção.
Visto que após a queda o ser humano tornou-se incapaz de buscar ao Criador, é
necessário que uma ação externa atraia e ilumine tal pecador. Esta ação é
chamada em ambos os sistemas de graça.
Daqui em diante é que ocorrem as divergências da mecânica da salvação nos dois
sistemas. Para o arminianismo, essa graça pode ser resistida até o fim da vida,
incorrendo, neste caso, na condenação eterna do mesmo. Já para o calvinismo, a
graça pode ser resistida temporariamente, pois se tal indivíduo é um dos
eleitos de Deus, então no momento em que Deus assim decidiu, a pessoa não poderá
resisti-la, pois será regenerado por Deus para que, posteriormente se arrependa
e creia.
Ao contrário de muitos irmãos arminianos, não
creio que o calvinismo seja uma heresia. Entendo que existam erros doutrinários
e eisegeses[11] em suas
interpretações do modelo criação – queda
– redenção. Entendo que o calvinismo é uma das interpretações
soteriológicas dentro do pensamento secundário da doutrina da salvação.
Em sua obra História das controvérsias da teologia cristã, o Dr. Roger Olson
propõe uma abordagem mediadora. Trata-se de uma superação das diferenças
desnecessárias e desastrosas entre perspectivas e interpretações doutrinárias.
Isso é algo completamente inerente ao debate soteriológico arminianismo x
calvinismo. A abordagem mediadora é um esforço para buscar a unidade da fé e
uma base comum partilhada por diferentes grupos cristãos. Por isso, ele
pergunta: “todos os cristãos deveriam partilhar de certas convicções? Existe,
por acaso, um conjunto doutrinário básico que define o cristianismo autêntico
em termos de conteúdo? Ou será que qualquer pessoa pode declarar-se
autenticamente cristã e, não obstante, crer no que sua mente ou vontade
consideram aceitável?”[12]
Uma maneira de chegarmos a uma visão
mediadora é entendendo que a teologia cristã possui dois conjuntos de
doutrinas, as primárias e as secundárias. Estas podem ser relativizadas (monergismo x sinergismo;
teorias escatológicas, etc) e aquelas são as que mantêm unidade e que possuem
unanimidade.[13] É preciso entender que,
ser arminiano ou calvinista não se trata de seguir na íntegra, os pensamentos
de Armínio e Calvino. Trata-se, na verdade, de uma identificação com
pontos-chave do sistema soteriológico.[14] O
arminianismo (e, obviamente, o calvinismo), embora busque ser bíblico, não é um
sistema inerrante e infalível, mas é um conjunto de interpretações acerca da criação – queda – redenção.
A
boa teologia deve nos conduzir ao reconhecimento
daquele que é adorado. Nossa postura deve ser de reverência, temor e dedicação
diante de Deus. O estudo teológico não é um fim em si mesmo, mas deve aprimorar
nossa relação com o Altíssimo, caso contrário não passará de mero conhecimento
intelectual. Martin
Lloyd-Jones foi feliz em seu comentário: “o grande perigo é tornar a teologia
um tema abstrato, teórico, acadêmico. Ela jamais pode ser isso, porque é
conhecimento de Deus".[15] Desta forma, o
conhecimento jamais deve ser objeto de arrogância, soberba, vaidade ou orgulho.
Paulo disse que, “se alguém cuida saber alguma coisa, ainda não sabe como
convém saber” (1 Co 8.2). Precisamos assumir uma postura humilde e jamais de
donos da verdade.
Um
arminiano não é um seguidor de Armínio
Normalmente, as pessoas que encontram
dificuldade em assumir um posicionamento teológico na área de soteriologia,
alegam que não seguem a homens e sim a Jesus Cristo. Uma das principais fundamentações
para esse posicionamento de repúdio relacionado ao arminianismo e/ou ao
calvinismo é o texto paulino de 1 Coríntios 1.11-13: “Meus irmãos, fui
informado por alguns da casa de Cloe de que há divisões entre vocês. Com isso
quero dizer que cada um de vocês afirma: ‘Eu sou de Paulo’; ‘eu de Apolo’; ‘eu
de Pedro’; e ‘eu de Cristo’. Acaso Cristo está dividido? Foi Paulo crucificado
em favor de vocês? Foram vocês batizados em nome de Paulo?”
Essa referência bíblica não serve para
defender a falácia lógica tratada no presente artigo. Vejamos o porquê: Paulo
começa a epístola dizendo que na comunidade de Corinto havia todos os dons
espirituais (1 Co 1.7). Esses dons estão relatados na mesma epístola no
capítulo 12. Entretanto, essa comunidade não podia ser chamada de espiritual e
sim de carnal, pois havia divisão nela. Uns preferiam as pregações de Paulo,
outros preferiam as mensagens de Apolo e havia um terceiro grupo que se
identificava mais com Pedro. Mas, havia um quarto grupo. Este grupo pode
parecer mais piedoso que os demais e, aparentemente, eles eram mais
cristocêntricos que os demais, porém, todos são tratados como imaturos:
Irmãos, não lhes pude
falar como a espirituais, mas como a carnais, como a crianças em Cristo. Dei-lhes leite, e não alimento sólido, pois vocês
não estavam em condições de recebê-lo. De fato, vocês ainda não estão em
condições, porque ainda são carnais. Porque,
visto que há inveja e divisão entre vocês, não estão sendo carnais e agindo
como mundanos? Pois quando alguém diz: "Eu
sou de Paulo", e outro: "Eu sou de Apolo", não estão sendo
mundanos? Afinal de contas, quem é Apolo? Quem
é Paulo? Apenas servos por meio dos quais vocês vieram a crer, conforme o
ministério que o Senhor atribuiu a cada um. Eu
plantei, Apolo regou, mas Deus é quem fazia crescer.
(1 Co 3.1-6)
Embora o quarto grupo pareça ser
cristocêntrico, na verdade eles eram tão problemáticos quanto os anteriores.
Isso se dava porque este grupo não se submetia a nenhuma autoridade. Eles não
são seguidores de homens, portanto, a liderança de Paulo, de Pedro, de Apolo,
ou de qualquer outra pessoa não servia. Eles se submetiam apenas a Jesus. Morris
explica que este grupo, provavelmente, tinha o seguinte lema: “Pertencemos a
Cristo, e a nenhum mestre.”[16]
Esse discurso, aparentemente piedoso, não
passava de uma falácia. A insubmissão não encontra lugar no pensamento paulino:
“Agora lhes pedimos, irmãos, que tenham consideração para com os que se
esforçam no trabalho entre vocês, que os lideram no Senhor e os aconselham. Tenham-nos
na mais alta estima, com amor, por causa do trabalho deles.” (1 Ts 5.12,13). O
autor da carta aos hebreus também disse: “Obedeçam aos seus líderes e
submetam-se à autoridade deles. Eles cuidam de vocês como quem deve prestar
contas. Obedeçam-lhes, para que o trabalho deles seja uma alegria e não um
peso, pois isso não seria proveitoso para vocês” (Hb 13.17).
Outra observação importante é a de que Paulo
lida com todos os quatro grupos chamando-os de “crianças.” Kistemaker explica
que esse termo é humilhante. Trata-se de uma exortação acerca da imaturidade
dos mesmos. Desta forma, todos os facciosos eram imaturos, não passavam de crianças
que não estavam glorificando a Deus.[17] A
infantilidade dos quatro grupos era tão grande que Paulo alega não poder dar um
alimento mais sólido. Ele está fazendo uso de uma metáfora para dizer que não
pode tratar de doutrinas mais profundas, pois eles a imaturidade deles clama
por um alimento mais leve e básico, isto é, as doutrinas rudimentares da fé
cristã.
Desta forma, parafrasear que não somos de
Paulo, Pedro, Apolo, Armínio ou Calvino, a fim de defender, com base no texto
de 1 Coríntios 1.12, que tal pessoa é seguidora de Cristo apenas e que não
segue os ensinos de nenhum outro mestre, configura um erro duplo: exegético e
histórico-teológico. O erro exegético já foi exposto. Portanto, nas próximas
linhas nos encarregaremos de demonstrar os erros histórico-teológicos.
Nenhuma pessoa que estuda as Escrituras está
isenta de pressupostos. Todas as comunidades cristãs possuem alguma linha teológica
que é oriunda de algum pensamento da história da teologia cristã. Mesmo aquelas
pessoas que alegam não seguir teologia nenhuma, acabam seguindo inconscientemente
determinados pontos amalgamados, ou acabam seguindo uma teologia própria. Até
mesmo as heresias não são novidades. Se pesquisarmos com atenção, poderemos
encontrar algum vínculo da ideia heterodoxa na história do cristianismo.[18]
Um primeiro exemplo disso é o que chamamos de
Trindade. Esta doutrina faz parte da lista daquelas que são rudimentares da fé
cristã. Negar a Trindade é negar o próprio Deus. O cristianismo precisou
realizar concílios para discutir questões teontológicas e cristológicas, verberando
ao final que Deus é trino. Entretanto, essa nomenclatura (Trindade) foi usada,
pela primeira vez, por Tertuliano de Cartago (160-220 d.C.),[19]
um cristão apologista e polemista. No final do capítulo 2 de sua obra Adversus Praxeam (Contra Práxeas), ele
declarou que
A heresia, a qual supõe
por si mesma possuir a pura verdade, pensando que não se pode crer que um só
Deus de nenhum outro modo a não ser dizendo que o Pai, o Filho e o Espírito
Santo são a mesma Pessoa, como se neste modo um também não fosse todos, em que
todos são um, por unidade de substância, enquanto o mistério da dispensação é,
todavia, guardado, o qual distribui a Unidade na Trindade, colocando em sua
ordem as três Pessoas – o Pai, o Filho e o Espírito Santo: três, mas não em
condição e sim em grau, não em substância e sim em forma, não em poder e sim em
aspecto.[20]
Como podemos perceber, Tertuliano está
desenvolvendo uma nomenclatura para explicar que a divindade dos cristãos é
única, mas que subsiste em três pessoas. O alvo de sua obra polemista é alguém
chamado Práxeas. Kelly explica que não é fácil determinar quem ele era, podendo
ter sido Noeto ou até mesmo o Papa Calixto. Independente da dificuldade de quem
ele era, Tertuliano anuncia que suas ideias eram heréticas, pois seu ensino era
o de que o Pai, o Filho e o Espírito Santo eram a mesma pessoa. Nessa
concepção, o Pai teria encarnado no ventre da Virgem e se tornado o próprio
Filho, que sofreu, morreu e ressuscitou.[21]
Esse ensino prefigurou o que alguns anos mais
adiante ficaria conhecido como sabelianismo, em função de seu defensor, o
Sabélio (? – 215 d.C.), modalismo (por entender que Deus havia se manifestado
em três modos) ou patripassianismo (que vem de duas palavras latinas, patri, que significa pai, e passio, que significa sofrimento).
Atualmente, esta mesma heresia é defendida sob a nomenclatura de unicismo.
Tertuliano teve um papel fundamental para a
utilização universal do termo “Trindade” e na difusão dessa doutrina. Agostinho
de Hipona, outro importante teólogo patrístico, escreveu um tratado muito
importante acerca da doutrina da Trindade cerca de trezentos anos depois de
Tertuliano, intitulado De Trinitate.
Entretanto, isso não faz dos cristãos seguidores do apologista de Cartago. Poderia
ter ressoado no terceiro século uma falácia lógica: “nem trinitariano e nem
unitariano, sou bíblico.”[22]
Ser trinitariano, portanto, não é o mesmo que
ser tertulianista. A cristandade deve muito ao esforço do apologista de
Cartago, mas isso não faz dos cristãos seguidores de todos os pensamentos
teológicos dele.[23] Tertuliano negava, por
exemplo, a virgindade perpétua de Maria, mas parecia crer numa espécie de
imaculada concepção da mesma.[24]
O mesmo acontece com inúmeras outras áreas da
teologia. Se existe uma doutrina que mais sofreu com interpretações equivocadas
no decorrer da história da Igreja foi, sem sombra de dúvidas, a cristologia.
Temos os primeiros indícios desses transtornos em uma das epístolas joaninas,
ao nos depararmos com uma defesa da dupla natureza de Cristo, diante dos
gnósticos que negavam a encarnação do verbo (1Jo 4.1-3). A discussão sobre a
natureza de Cristo perdurou alguns séculos da era cristã. Ário, por exemplo,
negava a divindade de Jesus e dizia que Ele era uma criação, ainda que a mais sublime.
Tal controvérsia foi debatida no Concílio de Niceia, em 325 d.C., mas só foi
solucionada definitivamente em Constantinopla, no ano de 381 d.C..
Apesar do desfecho triunfante sobre o
arianismo em Constantinopla, uma nova heresia surgiria meio século depois.
Dessa vez, a controvérsia cristológica tomaria nova versão em Nestório, que
fora empossado como patriarca de Constantinopla em 428 d.C.. Ele dizia que, em
Jesus, havia duas pessoas distintas e independentes, uma humana e outra divina.
Suas ideias foram rebatidas e anatematizadas no Concílio de Éfeso em 431 d.C.
Em suma, podemos definir assim os três
concílios supracitados: Niceia afirmou: Jesus é Deus; Constantinopla, por sua
vez, declarou: Jesus é também plenamente homem; e finalmente Éfeso concluía com
a união hipostática: Ele é plenamente Deus e plenamente homem, são duas
naturezas integradas em uma única pessoa, a saber, Jesus Cristo.[25]
Embora o concílio de Éfeso tenha afirmado a doutrina da união hipostática,
alguém precisou cunhar esse termo antes. A pessoa responsável pela utilização
desse termo foi Cirilo de Alexandria (378-444 d.C.), um Bispo que esteve
envolvido diretamente na controvérsia nestoriana.[26]
Isso não faz com que sejamos cirilianos e tampouco é plausível que usemos uma
falácia lógica aqui: “não creio na união hipostática e nem no nestorianismo,
sou bíblico.”
O último caso histórico que penso ser
pertinente para esse artigo é o da origem do pentecostalismo clássico. Sabemos
que esse movimento é bisneto do wesleyanismo. O clérigo anglicano, John Wesley,
teve sua experiência do coração aquecido em Aldergaste e se tornou outra
pessoa. Sua crença na perfeição cristã, ao contrário do que muitos pensam, não
era de impecabilidade, e sim de efeitos da verdadeira conversão. Wesley não
cria em duas bênçãos e sim apenas em uma.[27]
Desta forma, a regeneração era o princípio da santificação para Wesley.[28]
A ideia de segunda bênção começa a ser
aplicada no metodismo posterior a Wesley. A primeira pessoa a utilizar essa
terminologia foi John Fletcher, um dos discípulos de Wesley. Esse metodismo dá
origem a outro movimento, nascido nos EUA, conhecido como Holiness (movimento de santidade). Até aqui, as denominações
metodistas e holiness mantinham a
crença de que o batismo no Espírito Santo era evidenciado por uma vida de
santidade, isto é, pelo fruto do Espírito Santo. Foi quando um ex-ministro
metodista, Charles Fox Parham (1873-1829), abriu uma casa de estudos chamada
Betel, em Topeka, no Kansas.
No ano de 1900, enquanto
Parham e seus alunos estudavam, ele perguntou sobre as bases bíblicas da
doutrina do batismo com o Espírito Santo. Embora seus alunos fossem oriundos do
círculo holliness e a interpretação
normal fosse a de que o batismo era evidenciado pela vida de santidade, num
exame bíblico dessa aula, os alunos chegaram a conclusão de que ele era
evidenciado pelo falar noutras línguas. (...) Parham passou a pregar (...) uma
terceira obra da Graça, com a diferença de que a terceira consistia em ser batizado
no Espírito falando em outras línguas. Na noite de ano novo de 1901, o grupo
passou a buscar essa experiência e na madrugada do dia primeiro, Agnes Oznam,
foi a primeira pessoa a receber tal batismo. Desde então Parham passou a
ensinar o que ele denominou de “Fé Apostólica” em Kansas e nos estados
circunvizinhos, vindo a abrir uma escola em Houston, no Texas.[29]
Em 1903, William Seymour (1870-1922), que fora
ordenado pela Igreja de Deus (Anderson, Indiana), foi estudar em Houston, na
escola de Parham. Ele acabou sendo expulso de sua denominação por pregar a
terceira obra da graça. Seymour foi a pessoa que esteve à frente do que ficou
conhecido como Avivamento da Rua Azuza. O movimento da Rua Azuza atraiu pessoas
de inúmeras confissões e tradições, desde batistas, congregacionais, metodistas
e outros. Entretanto, a questão de uma terceira obra da graça gerou muitas
controvérsias pelas denominações estadunidenses e ocorreram muitas divisões
eclesiais e doutrinárias.
Quem rompeu, todavia, com a ideia de três
obras da graça, foi o pregador Batista William Durham (1873-1912). Durham
aderiu à experiência de línguas, mas adotou a visão de santificação de sua denominação.
Por isso, ele declarou, em 1910, que o ensino da inteira santificação não é
bíblico e que Cristo proporcionou a santificação na expiação. Ele assinalava,
ainda, que a santificação é recebida na conversão por identificação em Cristo
por um ato de fé e chamava essa doutrina de “obra completa do Calvário.”
Outrossim, Durham passou a dizer que o batismo no Espírito Santo é, além de
evidenciada pelo falar em línguas, a segunda obra da graça e que qualquer
pessoa poderia recebe-la através da fé e de uma busca sincera.[30]
Como se pode perceber, a crença do que
chamamos de Pentecostalismo clássico, ou de Pentecostalismo de Primeira Onda,
tem sua consolidação em William Durham. Os pentecostais brasileiros não têm
timidez e nem ressalvas de assumir a crença de que o batismo no Espírito Santo
é evidenciado pelo falar em línguas. Eles não dizem, “não sou pentecostal e nem
metodista, sou bíblico.” Isso pode ser visto na maior denominação pentecostal
clássica brasileira, as Assembleias de Deus. No documento intitulado Em que crêem os Pentecoostais de 1938,
diz que a referida denominação crê e prega o batismo no Espírito Santo. Em
1969, o jornal oficial da mesma instituição, o Mensageiro da Paz, publicou uma página com seus artigos de fé,
intitulado Cremos, que são os artigos
oficiais até o presente momento. Em seu nono artigo diz o seguinte: “[Cremos] No
batismo bíblico no Espírito Santo que nos é dado por Deus mediante a
intercessão de Cristo, com a evidência inicial de falar em outras línguas,
conforme a sua vontade.”[31]
É
possível não ser arminiano ou calvinista?
Diante do que já foi exposto está claro que,
ser arminiano, portanto, não implica na adoção integral das ideias de Armínio e
sim apenas no que tange à soteriologia, visto que o rótulo teológico arminianismo é usado para identificar a
interpretação da relação criação – queda
– redenção a partir de uma epistemologia do amor. O calvinismo, em
contrapartida, interpreta a mesma relação a partir de uma epistemologia da
soberania de Deus.
Os rótulos teológicos, embora nem sempre
consigam ser precisos, são úteis para identificar qual é o tipo de
interpretação sobre certa doutrina das Escrituras. Por exemplo, dentro da
escatologia, a doutrina das últimas coisas, temos interpretações diferentes
sobre o reino de Deus. Alguns entendem que esse reino é apenas futuro e possuem
uma perspectiva conhecida como Pré-milenismo. Essa vertente, entretanto,
divide-se em duas vertentes, o histórico e o dispensacionalista. Normalmente
eles são pessimistas em relação ao mundo atual, mas já existe um grupo
pré-milenista que tem uma visão progressista da terra. Ainda na interpretação
milenial, existem os pós-milenistas, que possuem uma visão otimista da terra e
os amilenistas, que têm uma visão pessimista. Os dois últimos sistemas não
crêem num milênio literal e entendem que este reino de Deus já está ocorrendo
na época da Igreja. Esses rótulos nos ajudam a entender nossos posicionamentos.
A mesma questão ocorre em relação à
eclesiologia, a doutrina da igreja. Certas denominações se posicionam como
favoráveis ao sistema de governo presbiteriano, outros em favor do
congregacional, outros preferem o episcopal, e ainda, existe o sistema
representativo.[32] Outras são pedobatistas,
outras credobatistas. Algumas são consubstancialistas, outras apenas crêem no
memorial. Certas comunidades ordenam mulheres ao pastorado, outras não. Algumas
possuem mais oficiais do que a Bíblia relata, outras têm apenas o Presbítero e
o Diácono. Enfim, a questão é que os rótulos estão presentes em todas as nossas
doutrinas. Mas, como o foco do presente artigo é a soteriologia, fica a
questão: é possível não ser arminiano ou calvinista?
Respondendo à pergunta: sim, é possível. Os
luteranos, por exemplo, não são calvinistas, embora creiam em boa parte do
acrônimo TULIP. Suas confissões oficiais são: “A Confissão de Ausburgo” (1530),
“A Apologia da Confissão de Ausburgo” (1530), “Os Artigos de Esmalcalde”
(1537), Os Catecismos Maior e Menor (1529), e “A Fórmula de Concórdia” (1577).
Todas estas confissões foram reunidas num só livro e publicadas em 1580, sob o
nome de “O Livro de Concórdia”. A interpretação de livre-arbítrio, contida na
confissão de Augsburgo, por exemplo, é exatamente igual ao entedimento
arminiano:
Quanto ao livre arbítrio
se ensina que o homem tem até certo ponto livre arbítrio para viver
exteriormente de maneira honesta e escolher entre aquelas coisas que a razão
compreende. Todavia, sem a graça, o auxílio e a operação do Espírito Santo o
homem é incapaz de ser agradável a Deus, temê-lo de coração, ou crer, ou
expulsar do coração as más concupiscências inatas. Isso, ao contrário, é feito
pelo Espírito Santo, que é dado pela palavra de Deus. Pois Paulo diz em 1
Coríntios 2: “O homem natural nada entende do Espírito de Deus” (Artigo XVIII)
Para a teologia arminiana, o homem não
regenerado possui um livre-arbítrio limitado, que pode ser chamado de natural,
isto é, aquele que incide sobre decisões naturais e corriqueiras da vida.
Todavia, para as coisas espirituais, este indivíduo não regenerado está morto e
somente a graça de Deus é que pode atraí-lo e expulsar do seu coração “as más
concupiscências inatas.”
Os luteranos também acreditam que o homem é
eleito incondicionalmente, não pela presciência, mas pela predestinação divina.
Em contrapartida, não crêem na dupla predestinação e entendem que os
condenados, assim o são por rejeitarem a Jesus por escolha própria. Sendo
assim, a graça pode ser resistida, embora seja oferecida livremente a todas as
pessoas. A fé é um dom de Deus, mas só é recebida pelos eleitos, os incrédulos
a rejeitam. Jesus morreu por todas as pessoas, mas não pagou por todos os
pecados. O único pecado que Jesus não teria morrido é o da incredulidade, que é
interpretada como sendo a blasfêmia contra o Espírito Santo. A salvação é assegurada
para a pessoa que está em Cristo, mas a apostasia é possível, caso a fé seja
perdida.
Em suma, os luteranos crêem na total
depravação, na eleição incondicional, na expiação ilimitada, na graça
resistível e na perseverança condicional dos santos. Curiosamente, eles são
monergistas. Deste modo, os únicos axiomas que estariam em convergência com a
TULIP seriam o T e o U.[33]
Sendo assim, entendo que embora não sejam arminianos, estejam mais próximo do
arminianismo do que do calvinismo. Isso, inclusive, merece uma releitura do
termo “reformado” que acabou sendo apropriado pelos calvinistas, visto que o
luteranismo é o movimento precursor da reforma.
Além dos luteranos, existe uma nova tentativa
de não se denominar arminiano e nem calvinista. Timothy
George, que é um dos representantes do molinismo, sugere que ao invés de TULIP,
o acônimo ROSES, onde R significa Radical
Depravity (Depravação Radical), O Overcoming
Grace (Graça Superadora), S Sovereing
Election (Eleição Soberana), E Eternal
Life (Vida Eterna) e S Singular
Redemption (Redenção Peculiar).[34]
Kenneth Keathley, que é outro escritor
molinista, segue a proposta de George e diz concordar com três pontos da TULIP,
a saber: T, U e P. Os únicos dois pontos que ele alega não concordar são,
portanto L e I, que correspondem, respectivamente aos axiomas S (o segundo,
Singular Redemption) e O (Overcoming Grace) do acrônimo ROSES. S nada mais é do
que o que chamamos de expiação ilimitada no arminianismo e O nada mais é do que
a graça preveniente.[35] É
importante destacar que, a proposta de ROSES não é uma proposta molinista e sim
uma proposta de um molinista, visto que o molinismo trata da onisciência e
soberania divinas frente ao livre-arbítio libertário.
Além dessas propostas, desconheço outra
tentativa de sistematizar a soteriologia, a não ser equívocos que ficaram sendo
conhecidos como pelagianismo e semi-pelagianismo. O primeiro foi a posição
defendida por um monge britânico chamado Pelágio. Ele cria que o ser humano
nasce neutro espiritualmente e que aprenderá a pecar por socialização. Esse
extremo gerou um debate com Agostinho de Hipona, que, por sua vez, defendia o
pecado original e que o ser humano nasce morto espiritualmente. Pelágio, então,
negou o pecado original e suas ideias foram consideradas como heréticas.
A posição pelagiana interfere nas demais
doutrinas da salvação, pois ao negar o pecado original, conduz a um sistema de
auto-salvação. Com isso, não importa se a graça é resistível ou irresistível,
ela se torna inútil. A eleição, bem como a perseverança, é realizada pelo
próprio individuo, que toma a decisão de ser salvo e de perseverar por conta
própria. Essa capacidade inata do homem configura um monergismo. O pelagianismo
é um ponto de vista popular em alguns círculos evangélicos da atualidade.
Muitas vezes é um ponto de vista defendido pelo desconhecimento
histórico-teológico.
Já o semi-pelagianismo é foi uma tentativa
dialética (tese, antítese, síntese).
Um homem chamado João Cassiano pretendeu achar um meio termo na controvérsia
pelagiana e com isso negou tanto que o homem nasce neutro, quanto que o homem
nasce morto espiritualmente. Sua proposta foi a de que o homem nasce neutro,
isto é, de que é possível dar o primeiro passo em direção a Deus, quem
completará a ação salvífica. Isso só é possível nesse sistema, porque João
Cassiano entendia que a imago Dei não
foi completamente afetada. O semipelagianismo é, ainda, mais popular no Brasil
do que o pelagianismo. Grande parte das pessoas que se intitulam arminianas é,
na verdade, semipelagiana. Elas negam a depravação total e assumem uma
depravação parcial.[36]
Considerações
finais
Afirmar não ser arminiano e nem calvinista,
sob o pretexto de que é bíblico, configura uma falácia lógica. A frase pode até
parecer piedosa e resgatadora da bibliocentrocidade. Todavia, conforme já foi
analisado, os sistemas soteriológicos arminiano e calvinista são bíblicos.
Outrossim, é usada uma falácia para defender a falácia analisada. Trata-se de dizer
que não somos de Paulo, nem de Pedro, nem de Apolo, nem de Armínio e nem de
Calvino, mas de Cristo. Esta falácia também foi analisada e chegamos à conclusão
de que o texto bíblico que embasa esse argumento é utilizado de maneira
equivocada, pois os de Cristo eram tão facciosos quanto os três grupos
anteriores.
Concluímos, ainda, que ser arminiano ou
calvinista não se trata de ser um seguidor integral de todos os pontos de vista
dos teólogos que representam esses sistemas, a saber, Jacó Armínio e João
Calvino. Dizer que não se segue o arminianismo por causa de Armínio é outra
falácia que foi desconstruída, haja vista outros pontos doutrinários que foram construídos
por pessoas altamente importantes no cristianismo histórico, tais como
Tertuliano, Cirilo de Alexandria Agostinho e William Durham, dentre vários
outros que não foram mencionados no presente artigo.
Uma última conclusão importante é que, a
soteriologia não é bipolar, isto é, não está limitado aos pólos do arminianismo
e do calvinismo. É possível não ser arminiano e não ser calvinista e ainda
assim, propor alternâncias nos axiomas que envolvem a soteriologia. Creio que o
único axioma que não permite essa modificação seja o da depravação total, visto
que a neutralidade ou a parcialidade dele recairá em pelagianismo ou
semipelagianismo, e assim o sistema deixará de ser bíblico.
Notas
[1] Bacharel em Teologia
pela Faculdade Nazarena do Brasil (FNB), especialista em Ciências da Religião
pela Universidade Cândido Mendes e Mestrando em Teologia pela Faculdade Batista
do Paraná. Professor de Teologia na FNB e no Seminário Teológico Nazareno do
Brasil (STNB). Email: prviniciuscouto@yahoo.com.br.
[2] Uma obra muito
importante que trata da desmitificação do arminianismo é OLSON, Roger. Teologia arminiana: mitos e realidades.
São Paulo: Reflexão, 2013.
[3] OLSON, Roger E. Op. Cit., p. 243.
[4] COPI, Irving. M. Introdução à lógica. São Paulo: Mestre
Jou, 1978, p. 73.
[5] CUNHA, Marisa
Ortegoza da; MACHADO, Nilson José. Lógica
e linguagem cotidiana: verdade, coerência, comunicação e argumentação. Belo
Horizonte: Autêntica, 2008, pp. 13, 15.
[6] GOLDSTEIN, Laurence;
BRENNAN, Andrew; DEUTSH, Max; LAU, Joe Y. Lógica:
conceitos-chave em filosofia. Porto Alegre: Artmed, 2007, p. 27.
[9] CHAMPLIN, Norman;
BENTES, João Marques. Enciclopédia de
Bíblia, Teologia e Filosofia. São Paulo: Candeia, 1991, volume 2, p. 673.
[10] Ibid, volume 1, p.
536.
[11] Eisegese é uma expressão teológica que significa “de fora para
dentro.” Trata-se de interpretar o texto bíblico a partir de pressupostos, da
cultura ou de outros fatores externos, forçando a incorporação deles ao sentido
original do texto. O contrário disso é a exegese,
cujo significado é “de dentro para fora.” Esse é o método correto de
interpretação das Escrituras. Devemos analisar qual é o objetivo original do
texto a partir da cultura, geografia, etimologia, teologia e demais contextos
da época. Depois disso, podemos realizar aplicações para a nossa realidade,
interligando o texto antigo com o leitor ou ouvinte contemporâneo.
[14] Apesar disso, o
calvinismo ainda defende que é mais do que um sistema soteriológico e
entendem-se a si mesmos como uma cosmovisão. Por isso, neste artigo tenho
procurado sempre me referir à soteriologia calvinista.
[15] LLOYD-JONES, Martin.
Uma Escola Protestante Evangélica: In: Discernindo
os Tempos. São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1994, p. 389.
[16] MORRIS, Leon. 1 Coríntios: introdução e comentário.
São Paulo: Vida Nova, 2011, p. 32.
[17] KISTEMAKER, Simon. Comentário do Novo Testamento: exposição da
primeira epístola aos coríntios. São Paulo: Cultura Cristã, 2003, pp.
147-148.
[18] Para uma breve noção
sobre essa ideia, conferir o artigo que escrevi: COUTO, Vinicius. Heresias contemporâneas: um reflexo das
controvérsias dos primeiros cinco séculos da era cristã. Disponível em:
http://prviniciuscouto.blogspot.com.br/2013/12/heresias-contemporaneas-um-reflexo-das.html.
Acesso em 27 de outubro de 2016.
[19] KELLY, J. N. D. Patrística: origem e desenvolvimento das
doutrinas centrais da fé cristã. São Paulo: Vida Nova, 2009, p. 84.
[20] TERTULIANO. Against Praxeas 2.
[21] KELLY, J. N. D. Op. Cit., p. 90.
[22] Embora haja um
anacronismo na frase, pois o cânon neotestamentário ainda não estava fechado, a
ideia da mesma é apenas parafrasear a falácia que estamos analisando neste
artigo.
[23] Para um estudo sobre
alguns itens da teologia de Tertuliano ver: SILVA, Elias Gomes da. O pensamento teológico de Tertuliano.
Disponível em:
http://www.monergismo.com/textos/biografias/pensa-teo-Tertuliano_Elias-Gomes.pdf.
Acesso em 27 de outubro de 2016.
[24] COUTO, Vinicius. Culto Cristão: origens, desenvolvimento e
desafios contemporâneos. São Paulo: Reflexão, 2016, p. 65, 68.
[25] REILY, Duncan. A História da Igreja. São Paulo:
Imprensa Metodista, 1993, p.46.
[26]
KELLY, J. N. D. Op. Cit., p. 236.
[27] A obra mais completa
sobre a visão de Wesley a cerca da inteira santificação e sua crença em apenas
uma obra da graça, em português, é: NOBLE, Thomas. Trindade Santa, Povo Santo: a
teologia da perfeição cristã. Maceió: Sal Cultural, 2015.
[28] Para entender melhor
sobre a visão de Wesley sobre santificação, ver: COUTO, Vinicius. Em favor do Arminianismo-Wesleyano: um
estudo bíblico, teológico e exegético de sua relevância na contemporaneidade.
São Paulo: Reflexão, 2016, pp. 181-194.
[29] COUTO, Vinicius. Culto Cristão, pp. 167,168.
[31] As fotos dos dois
documentos citados podem ser vistos na matéria a seguir: GERMANO, Altair. A origem do “cremos” das Assembleias de Deus
no Brasil. Disponível em: http://www.altairgermano.net/2011/10/origem-do-cremos-das-assembleias-de.html.
Acesso em 27 de outubro de 2016. Uma curiosidade é que no documento de 1938, há
um claro posicionamento contra o calvinismo, mas ao mesmo tempo, não há um
posicionamento em favor do arminianismo: “...o movimento pentecostal não admite
o fanatismo das predestinações e salvação incondicional; mas, se adstringe à
Palavra de Deus, aceitando e pregando a salvação pelo sangue de Jesus...”.
Assim como os pentecostais assembleianos se posicionam no batismo no Espírito
Santo, também o fazem na escatologia, adotando o pré-milenismo (Cf o artigo
11°).
[32] A Igreja do Nazareno
adota uma forma distinta de governo, chamada de representativo. Trata-se de uma
forma de governo no qual a comunidade é dirigida por ministros e leigos. Há uma
junta de governo que é responsável pelas decisões locais. Essa junta é composta
pelo pastor titular, que é o presidente da junta e por outras pessoas que são
eleitas pela igreja local, a saber, secretário, tesoureiro, presidente do
departamento de missões, presidente do departamento de EBD, presidente do
departamento de jovens, presidente do departamento de diáconos e os ecônomos.
[33] Para consultar mais
sobre a soteriologia luterana, consultar: KOEHLER, Edward; KUHLMAN, Brent. Summary of Christian
Doctrine: a popular presentation of the teachings of the Bible. Saint Louis: Concordia Publishing House, 2006; JACKSON, Gregory L. Catholic, Lutheran, Protestant: a comparison
of three Christian confessions. Glendale: Martin Chemnitz Press, 2007;
KOLB, Robert. The Christian faith: a
Lutheran exposition. Saint Louis: Concordia Publishing House, 1993.
[34]
GEORGE, Timothy. Amazing Grace: God’s
Initiative – Our Response. Nashville: Lifeway, 2000, pp. 71-83.
[35]
KEATHLEY, Kenneth. Salvation and Sovereignty: a molinist approach. Nashville:
B&H Academic, 2010, pp. 1-4.
[36] Para um entendimento
mais detalhado dos sistemas pelagiano, agostiniano e semipelagiano, ver:
TITILLO, Thiago. A gênese da
predestinação na história da teologia cristã: uma análise do pensamento
agostiniano sobre o pecado e a graça. São Paulo: Reflexão, 2016, pp. 61-98.