Trabalhei num departamento de certa
empresa que era bastante rigorosa com horários e isso criou uma cultura de
pontualidade entre os funcionários bastante interessante. Havia pessoas que
iniciavam sua jornada de trabalho às 07:30 h e chegavam na portaria da empresa
às 06:45 h, às vezes 06:30 h.
O horário de almoço também tinha esses
mesmos padrões. Porém, nossa equipe de produção precisava sair mais cedo para
tomar banho e somente após a higienização é que começava a contar o horário de
refeição. Como não havia nenhuma catraca que registrasse esses intervalos,
algumas pessoas passaram a dar um “jeitinho brasileiro” no seu tempo de almoço.
Saíam 11:20 h do local de trabalho,
tomavam seus banhos e estavam prontos para almoçar a partir de 11:40 h.
Voltavam ao vestiário por volta de 12:10 h e só trocavam de roupa a partir das
13:00 h, chegando ao local de trabalho novamente às 13:20 h, sendo que o
horário de almoço deveria ser de uma hora.
Esse “jeitinho” trouxe uma péssima
reputação para nossa equipe. Muitas pessoas perderam oportunidades de promoção
em função da má fama naquela época. A equipe administrativa costumava nem fazer
hora de almoço algumas vezes, mas a fama se alastrou por todo o grupo e trouxe
junto um grande mal estar. Todavia, como diz o provérbio popular, “até explicar
que focinho de porco não é tomada...”.
Da mesma forma, os “evangélicos” têm
sido ajuntados dentro de um mesmo saco e com isso vários estereótipos têm sido
mal aplicados. Quem nunca ouviu que em “igreja evangélica só pede dinheiro”? Ou
que crente é “bitolado”, “fanático” ou “alienado”? São percepções erradas que
algumas pessoas têm dos cristãos evangélicos no Brasil.
Aliás, o próprio termo evangélico,
tornou-se genérico. Diversas denominações são rotuladas como parte de um mesmo
grupo quando na verdade nem sempre o são. Exemplo disso é a classificação dos
Adventistas pelo censo do IBGE, que foram inseridos entre os evangélicos de
missão.
Em outras estatísticas, como a do Pew Research Center e a da Enciclopédia
Mundial do Cristianismo, as Testemunhas de Jeová e os mórmons são encontrados
em meio aos cristãos. Mas por que essas distinções seriam importantes? Porque
nossas características falam de nossa identidade.
A
importância de uma identidade
A discussão a respeito da importância
identitária tem seu lugar de preeminência nas ciências sociais, sendo abordada
principalmente na antropologia, arqueologia, psicologia e sociologia. A
relevância de se ter uma identidade reside no fato de que, ela (a identidade)
faz com que um grupo se diferencie do outro. Os maias não são os astecas e
vice-versa.
Essas características distintivas
podem ser encontradas de diversas formas, dentre as quais podemos destacar: os
costumes (formas de pensar, sentir e agir), as tradições e as regras. Brandão
afirma que a expressão “identidade social” sugere um conceito que “explique
por exemplo o sentimento pessoal e a consciência da posse de um eu...”.[1]
Woodward mostra essa realidade ao
pontuar a identidade como algo relacional, isto é, um grupo que precisa ser
diferenciado do outro para que ambos sejam distinguidos.[2] Embora algumas pessoas não
gostem de rótulos, eles são importantes para destacar as particularidades dos
grupos sociais.
Se dividirmos as principais religiões
mundiais em blocos identitários, teríamos os cristãos, muçulmanos, hinduístas,
budistas, judeus, sikhistas e animistas separados em galerias macros. Inequivocamente,
esses grupos possuem identidades completamente distintas.
Em contrapartida, se desdobrarmos o
bloco “cristãos”, por exemplo, teríamos diversos sub-blocos identitários, tais
como os reformados, evangelicais, pentecostais, neopentecostais, liberais,
neo-ortodoxos e católicos. Embora todos esses grupos estejam alocados em um
bloco “macro”, possuem características distintivas que formam uma identidade
legítima.
A maioria dessas categorias acaba
sendo heterogênea. Não há possibilidade de formar uma identidade reformada-liberal
ou evangélico-liberal ao mesmo tempo. Ou se é uma coisa ou se é outra. Nenhuma
mutação que tente amalgamar essas posições seria bem sucedida e isso mostra a
grande necessidade de desenvolver uma identidade sólida.
As
identidades religiosas brasileiras
Uma forma de se obter a correta
concepção de algo, é partindo da dialética do que esse algo não é. O Apóstolo Paulo, por exemplo,
disse que “o reino de Deus não é comida nem bebida, mas justiça, paz e alegria
no Espírito Santo” (Rm 14.17). Se alguém definisse o reino de Deus como algo
material, palpável, humanizado e físico, estaria equivocado, pois a correta
concepção é oposta a esse pensamento.
Muitos fenômenos religiosos hodiernos
enquadram-se na categoria “não é”.
Absolutamente, o reino de Deus não é “teologia da prosperidade”. Esta
pseudo-teologia enfatiza o enriquecimento misterioso e o faz de formas
completamente anti-bíblicas, usando meios abomináveis para fins ainda mais
inescrupulosos.
Quando se fala em “teologia da prosperidade”,
estamos falando de um sistema de crença que tem um pacote mais requintado, isto
é, não se limita à área financeira. Tal teologia apregoa temas como “confissão
positiva” e é também conhecido como “movimento da fé”, em virtude da ênfase ao
poder desta.
Confissão positiva trata-se da crença
de que as palavras possuem poder quando confessadas. Essa confissão pode, na
verdade, ser tanto positiva quanto negativa. Neste caso, por exemplo, se alguém
disser “não vejo a hora de ter a minha casa própria”, nunca terá mesmo, pois
está confessando negativamente que “não vê a hora”. O problema é que tal
pensamento não se coaduna com as Escrituras e não passa de mera superstição.
Pegando carona com essa ideia é que
muitos comunicadores do Evangelho gritam expressões como “eu declaro”, “eu
profetizo”, “eu determino”, “eu decreto”... Como se tais expressões fossem um
abracadabra para a realização de algo divinal.
Outra faceta da “teologia da
prosperidade” é a sua alcunha norte-americana: “movimento da fé”. Embora não usemos
tão frequentemente esse termo no Brasil, tal conceito está arraigado em nossa
nação. Muitas igrejas estão vivendo uma crise de identidade e permitindo que
tais “estranhezas” maculem suas origens.
O “movimento da fé” acusa a não
conquista de algo, a não cura de uma enfermidade, o fracasso de determinada
situação à falta de fé. Resumidamente, tal movimento não tem fé em Jesus, mas
tem “fé na própria fé”. É como se Deus fosse movido pela nossa fé! A soberania
nesta história não vem do alto, mas vem da fé do homem! Vale dizer: a fé não é
um fim em si mesma!
Poderíamos citar várias outras
identidades desconexas com o autêntico Evangelho, mas teríamos que prolongar
exaustivamente nosso artigo. Aberrações como o “movimento de batalha
espiritual”[3] e suas propagações que
mais se assemelham a um filme de terror (lobisomens, vampiros, zumbis, etc);
“movimentos apostólicos”[4] que não passam de
“apostolice”; “movimentos restauracionistas”[5] que acreditam estar
restaurando os ofícios primitivos e confundem “ofícios” com “ministérios”;
movimentos que distorcem a doutrina da graça tais como o da “Hipergraça” ou “graça
barata”[6], são exemplos disso. Enfim,
a lista é grande.
Considerações
finais
Do ponto de vista sociológico, a
identidade precisa da diferença e a diferença da identidade. Ambas são
inseparáveis.[7]
Como povo “Nazareno”, precisamos conhecer nossas origens e não negociar nossa
identidade. Somos um povo que nasceu da fusão entre três organizações cristãs,
a saber: a Igreja do Nazareno, a Associação de Igrejas Pentecostais da América
e a Igreja de Cristo de Santidade.[8] Nosso berço tem seu start up no Movimento de Santidade, cuja
gênese se encontra em um dos maiores evangelistas e avivalistas da história,
John Wesley. Nossa teologia é Armínio-Wesleyana.
Podemos e devemos lutar pela unidade
na diversidade. Igualmente, é necessário que tenhamos uma atitude o mais
irênica[9] possível. Entretanto,
devemos assim agir sem abrir mão de nossas raízes e de nossa identidade. Nossa
relação deve ser heterogênea com ensinos que distorçam a sã doutrina, pois
assim como água e óleo não se misturam, ortodoxia e heterodoxia são
inconectáveis.
Ter uma identidade é saber quem somos,
de onde viemos e para onde vamos. Somos “nazarenos” porque seguimos a Jesus de
Nazaré. Ele é o nosso modelo de santidade, de caráter e de vida. Viemos de uma
fusão de “santidade” e não de uma divisão individualista. Estamos neste mundo,
mas não somos dele. Em breve o que é corruptível será revestido do que é
incorruptível e num abrir e piscar de olhos, o que é mortal será revestido da
imortalidade e poderemos nos regozijar eternamente num local que olhos não
viram, ouvidos não ouviram e que jamais penetrou em coração humano. Esse lugar
é o que Deus tem preparado para aqueles que o amam!
Até lá...
Vinicius Couto
Soli Deo Gloria!
[1] BRANDÃO, R. C.. Identidade e etnia: construção da pessoa e
resistência cultural. São Paulo: Brasiliense, 1990, p. 37.
[2] SILVA, Tomaz Tadeu
(Org). Identidade e diferença – a
perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis: Vozes, 2000, pp. 7-9.
[3] O movimento de
batalha espiritual ou guerra espiritual, como alguns chamam, admite e ensina doutrinas completamente
estranhas às Escrituras, tais como: quebra de maldições, maldições
hereditárias, mapeamento espiritual, misticismo, maniqueísmo, demonismo
generalizado (tudo é o diabo), cobertura espiritual e práticas
supersticiosas, dentre várias outras.
[4] O título de Apóstolo
é descabido para nossos dias. Tecnicamente falando, um Apóstolo deveria ter
sido testemunha ocular de Jesus e ter sido comissionado por Ele. Sendo assim, a
última pessoa a preencher tais requisitos é, indubitavelmente, o Apóstolo
Paulo.
[5] “Movimento
restauracionista” foi um termo usado no presente artigo para se referir a
certos grupos que acreditam estar restaurando os ofícios de Efésios 4.11
(Apóstolos, profetas, evangelistas, pastores e mestres). Todavia, essas
nomenclaturas tratam de dons ministeriais e não de ofícios eclesiásticos.
[6] A expressão “graça
barata” foi cunhada pela primeira vez pelo teólogo alemão, Dietrich Bonhoeffer,
em sua obra “Discipulado”, publicada em 1937. Para Bonhoeffer, “A graça barata
é a pregação do perdão sem arrependimento, o batismo sem a disciplina comunitária,
é a Ceia do Senhor sem confissão dos pecados, é a absolvição sem confissão
pessoal. A graça barata é a graça sem discipulado, a graça sem a cruz, a graça
sem Jesus Cristo vivo, encarnado” (BONHOEFFER, Dietrich. Discipulado. São Leopoldo: Sinodal, 2004, p. 10). Um propagador
dessa “graça barata” na atualidade é o pastor cingapuriano Joseph Prince. Para
maiores informações, acessar http://www.cacp.org.br/as-heresias-de-joseph-prince/. A graça barata tem
sido mais chamada de “hipergraça” atualmente, tendo em vista a ênfase que seus
proponentes dão nas conquistas do sacrifício de Cristo a despeito da
santificação.
[7] SANTOS, Virgínia
Inácio dos. Identidade e diferença. Revista Mandrágora, Vol. 16, n° 16, 2010, p.
116.
[8] Manual da Igreja do
Nazareno 2009-2013. Casa Nazarena de Publicações, 2009, pp. 16-19.
[9] Significa “de espírito
pacífico”, que busca entender os “pontos de vista opostos antes de discordar,
e, se for necessário discordar, o faz com respeito e amor” (cf. OLSON, Roger. História das Controvérsias da Teologia
Cristã. São Paulo: Vida, 2004, p. 17).
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