Certa jovem está trabalhando em uma loja, vendendo roupas como de costume, quando é abordada por um homem que a chama no canto, a fim de lhe falar em particular:
- Moça, com licença. Sou pastor evangélico e preciso entregar uma revelação a você. Fizeram uma obra de feitiçaria contra sua família. Pagaram R$ 1.000,00 para acabar com seu casamento.
A moça ficou assustada com aquelas palavras e logo tratou de buscar uma forma de quebrar aquelas maldições, afinal, sua família está em jogo. Ligou a TV e viu outro pastor fazendo uma oração forte. Em seguida, o tele evangelista pediu que o telespectador colocasse um copo com água sobre o aparelho de televisão, pois iria orar repreendendo todos os tipos de demônios, cujos nomes são os mais variados.
Ela bebeu a água benta do pastor e depois decidiu fazer uma visita na campanha das causas impossíveis daquela denominação do universo neopentecostal do Reino de Deus. Chegando lá, a sessão de descarrego pegou fogo e os espíritos malignos tinham oportunidade de contar seus objetivos antes de serem expulsos. Depois desse fogo, o que pegou fogo foi a fogueira de dinheiro. Parecia a sarça que Moisés viu. Ardia em chamas, mas não se consumia.
A mensagem foi muito emocionante. A partir de agora a moça estava determinada a determinar. O desfecho daquela reunião de poder foi realizado com a proposta de que as pessoas levassem uma rosa ungida, pois este objeto protegeria a família e sugaria todos os maus espíritos e maus olhados daquela casa. A moça, mais do que depressa pegou a sua, pois tinha certeza que seria mais eficaz que o galho de arruda de sua avó. Ela estava se agendando para participar da próxima reunião, pois o pastor havia avisado que iria ungir os celulares para que cessassem as cobranças de cartão de crédito.
Esse caso é baseado em fatos reais e num primeiro momento pode surgir o seguinte questionamento: o que ele tem a ver com o legado dos jesuítas? Somente obteremos a resposta para essa pergunta voltando alguns anos na história.
A origem dos Jesuítas
Os Jesuítas fazem parte de uma ordem religiosa da Igreja Católica chamada “Companhia de Jesus”. Esta ordem foi fundada em 1534 por sete estudantes da Universidade de Paris, os quais visavam desenvolver um trabalho de acompanhamento hospitalar e missionário, sob os votos de pobreza e castidade.
Além disso, a Companhia de Jesus foi um movimento oriundo da contrarreforma, cujo um dos principais objetivos era o de impedir o avanço da Reforma Protestante. Este grupo de sete estudantes liderados por Inácio de Loyola, organizou esta ordem com características de muita disciplina e rigidez, dando ênfase à absoluta abnegação, conforme já vimos anteriormente e à obediência total ao papa e às doutrinas católicas. Essa postura antiprotestante pode ser vista nas famosas palavras de Inácio de Loyola em sua obra Exercícios Espirituais: “Acredito que o branco que eu vejo é negro, se a hierarquia da igreja assim o tiver determinado.” [1]
O Papa Paulo III confirmou a nova ordem em 1540, sendo a mesma reconhecida por bula papal. Inácio de Loyola foi escolhido como primeiro superior geral, enviou seus companheiros e missionários para vários países, primeiramente entre os europeus e em seguida entre os asiáticos, africanos e americanos, com o intuito de criar escolas e seminários.[2] Quando Inácio de Loyola morreu em 1556, já havia aproximadamente mil jesuítas em vários países da Europa e missionários na África, Índia, China, Japão, Paraguai e Brasil.
A Companhia de Jesus nasceu em um período muito fértil, pois a Europa estava vivendo o ápice da “Era dos descobrimentos” em busca de novas rotas comerciais para as Índias. As explorações marítimas pioneiras (Portugal e Espanha) levavam consigo equipes de desbravadores, representantes da Igreja Católica e posteriormente os missionários jesuítas.
Os primórdios da colonização
Em 22 de Abril de 1500 chegava a tripulação portuguesa com cerca de 1.350 homens e oito franciscanos liderados pelo frei Dom Henrique Soares de Coimbra, totalizando nove capelães, um para cada cento e cinquenta tripulantes. O capitão-mor das dez naus e das três caravelas fazia parte de outra ordem religiosa e militar, a Ordem de Cristo. Esta ordem foi criada em 1319 pelo Papa João XXII e foi através dela que a expedição portuguesa foi financiada.
Na véspera da partida da expedição de Cabral, houve uma cerimônia religiosa. Num Domingo, 8 de Março de 1500, o Bispo Diogo Ortiz benzeu a bandeira da Ordem de Cristo. A bandeira foi passada para Dom Manuel I e em seguida para o descobridor do Brasil, Pedro Álvares Cabral.
No primeiro Domingo em solo brasileiro, dia 26 de Abril, os portugueses celebraram a também primeira missa, dirigida pelo Frei Henrique. Na primeira Sexta-feira da paixão, dia 01 de Maio, frei Henrique celebrou a segunda missa, a qual foi precedida por uma procissão. Participaram desta cerimônia mais de mil portugueses e aproximadamente cento e cinquenta nativos.
Pero Vaz de Caminha, escrivão da armada de Cabral, escreveu sua famosa carta, datada de 1° de Maio de 1500, contando as coisas que viu em solo brasileiro. Caminha conta que durante a segunda missa, os nativos ajudaram a carregar a cruz para o local designado, ajoelharam-se, colocaram-se de pé e ergueram suas mãos imitando os portugueses em seus ofícios religiosos:
“Ali disse missa o Padre Frei Henrique, a qual foi cantada e oficiada por esses já ditos. Ali estiveram conosco, assistindo a ela, perto de cinquenta ou sessenta deles, assentados todos de joelhos, assim como nós. E quando se chegou ao Evangelho, ao nos erguermos todos em pé com as mãos levantadas, eles se levantaram conosco e alçaram as mãos, estando assim até se chegar ao fim; e então tornaram a assentar-se, como nós. E quando levantaram a Deus, que nos pusemos de joelhos, eles se puseram todos assim como nós estávamos, com as mãos levantadas, e em tal maneira sossegados que certifico a Vossa Alteza que nos fez muita devoção.” [3]
Com esse episódio Caminha ficou entusiasmado e solicitou ao rei D. Manuel I que enviasse missionários para a terra, a fim de batizá-los o mais depressa possível: “O melhor fruto que nela se pode fazer, me parece que será salvar essa gente. E esta deve ser a principal semente que Vossa Alteza em ela deve lançar.”[4]
Havia mais de um milhão e meio de habitantes divididos em mais de mil etnias. Dentre esses habitantes, estavam os aimorés, apinajés, caetés, botocudos, caipós, tupinambás, canelas, tupiniquins, cariris, tabajaras, goitacazes, guaianazes, guaranis e tupis.
A solicitação de Caminha para o envio de missionários não foi atendida e sua carta esteve arquivada por quase trezentos anos, tendo sido encontrada na Torre do Tombo em Lisboa pelo historiador espanhol Juan Bautista Muñoz no ano de 1793.[5]
A chegada dos Jesuítas no Brasil
Dom Manuel I não atendeu à solicitação de Caminha. Somente durante o reinado de seu sucessor, D. João III, é que chegaram novos religiosos em nossa pátria. João III declarou que “a principal coisa que me moveu a mandar povoar as ditas terras do Brasil, foi para que a gente delas se convertesse à nossa Santa Fé católica”.[6]
Em 1549 chegava ao Brasil um grupo de seis missionários liderados pelo Padre Manuel da Nóbrega. Os missionários vieram acompanhados de mais de mil pessoas, entre soldados, artesãos, colonos, funcionários e aproximadamente quatrocentos criminosos que haviam sido condenados a viverem fora de sua terra natal, além de Tomé de Sousa, que seria o primeiro Governador do Brasil.
Nóbrega e os outros missionários moraram entre os indígenas por quase um ano. A percepção inicial de Manuel da Nóbrega era de que os índios eram como “papel branco em que se poderia escrever à vontade”.[7] Ele pensava que teria um futuro promissor com aqueles índios: “estão estes Negros mui espantados de nossos officios divinos. Estão na egreja, sem ninguem lhes ensinar, mais devotos que os nossos Christãos”.[8]
Aparentemente seria fácil evangelizar os nativos “não alcançados”, mas logo Manuel da Nóbrega foi percebendo que não era tão fácil assim, pois os portugueses não eram cristãos tão devotos e os índios viviam se revoltando contra as constantes tentativas de serem escravizados.
Diante destas circunstâncias, Nóbrega solicitou que se enviassem novos reforços missionários, mesmo que fossem fracos de engenho e doentes do corpo. Nesta leva de missionários jesuítas aparece José de Anchieta, que na ocasião era noviço e que ficou apelidado depois de “Apóstolo do Brasil”. Anchieta sofria de espinhela caída.
Essa nova leva de missionários não se preocupava com a genuína conversão dos índios e sim na conversão religiosa dos mesmos. Entre 1558 e 1566, os jesuítas teriam batizado entre 12 a 15 mil índios. O padre Eusébio Dias Laços chegou a batizar num só dia 3.700 nativos. Anchieta disse feliz em uma de suas cartas: “Os que em toda esta província foram este ano, pelo trabalho dos nossos, arrancados à impiedade e purificados pelo batismo chegam a dois mil (tal é a bondade de Deus!)”,[9] mostrando certo conceito banalizado com respeito à ordenança de Cristo.
O legado dos jesuítas
Os jesuítas deixaram legados inquestionáveis. O que é discutido entre os historiadores, antropólogos, cientistas políticos, pedagogos, filósofos e cientistas da religião é a qualidade desses legados. A análise histórico-educacional se divide entre apologistas que avaliam a herança da Companhia de Jesus de forma positiva e críticos negativistas que olham a partir de um prisma pessimista.
O Dr. Ronaldo Vainfas, um dos maiores expoentes da historiografia nacional, disse em uma entrevista ao SESC-SP que, o papel dos jesuítas foi enorme,
“Do ponto vista do catolicismo, os jesuítas foram praticamente os únicos a defenderem a Igreja tridentina em colônia onde a própria instituição eclesiástica era débil. Assumiram a educação dos filhos dos colonos, formando quadros para a Igreja e para o Estado. Combateram o escravagismo dos colonos, embora utilizassem a mão de obra indígena em seus aldeamentos. Lutaram por um tratamento mais humano para os escravos africanos, embora considerassem a escravidão deles legítima. Tentaram, em resumo, combinar os valores espirituais da Igreja com os objetivos comerciais do sistema colonial. Conciliadores por vocação. Combatentes por tradição. Goste-se ou não dos jesuítas, é impossível minimizar a importância dos inacianos na nossa história.” [10]
Já a professora Maria Elizabete Xavier, Doutora em educação na área Filosofia e História da educação pela PUC/SP, comenta que a tarefa educativa dos jesuítas era “basicamente aculturar e converter ‘ignorantes’ e ‘ingênuos’, como os nativos, e criar uma atmosfera civilizada e religiosa para os degredados e aventureiros que para aqui viessem”. Em sua visão isso se tratava de “dominar, pela fé, os instintos selvagens dos donos de terra, que nem sempre recebiam pacificamente os novos proprietários”.[11]
Podemos verificar em vários documentos históricos a forma como os nativos eram descritos. Os negros e escravos eram constantemente chamados de “peças”. Os índios eram comparados a animais e deviam ser “amansados”, “domados” ou “domesticados”. Sweet diz que, são muito raras as citações de índios por seus nomes, salvo os caciques. Além disso, esses documentos não trazem nenhuma inferência de amizade estreita entre os padres e os índios, bem como não há citações de nenhum jesuíta aprendendo algo com algum desses povos. Para piorar, ainda eram encontradas pessoas no século XVIII que duvidavam que esses índios fossem de fato humanos ou que possuíssem a faculdade da razão.[12]
O professor João Antônio Monlevade, Doutor em Educação pela UNICAMP, faz sua crítica sobre esse tema dizendo que, “nos colégios jesuíticos (...) quem mandava eram os padres, e os que mandavam – falar português e aprender latim – tinham a virtude de revelar a ignorância dos alunos, inculcar a obediência, despertar o complexo de inferioridade e justificar a desigualdade e a exclusão”.[13]
Os jesuítas deixaram quatro legados incontestáveis: artístico, cultural, pedagógico e religioso. Vejamos um pouco sobre cada um deles.
O legado artístico
Quando os missionários jesuítas chegaram no Brasil encontraram os nativos que, tinham sua própria religiosidade. Embora Manuel de Nóbrega pensasse o contrário: “este gentio não adora nada, nem crê nada”[14], os índios possuíam um tipo de crença pagã, na qual adorava-se os elementos da natureza e buscava-se contatos com espíritos através de rituais, como beberragem de poções, danças e cânticos de invocação. Essas cerimônias eram lideradas por um pajé ou xamã que tocava um instrumento sagrado chamado maracá, uma espécie de chocalho.
Depois de uma melhor observação, os jesuítas perceberam que os índios possuíam sua maneira original de crenças e adotaram medidas evangelizadoras com linguagens artísticas para obterem êxito em sua missão catequética, fazendo missas cantadas e teatros. Manuel da Nóbrega descreveu a celebração de uma missa cantada, ocorrida em 19 de julho:
“Tivemos missa cantada com diacono e subdiacono; eu disse missa, e o padre Navarro a Epistola, outro o Evangelho. Leonardo Nunes e outro clerigo com leigos de boas vozes regiam o côro; fizemos procissão com grande musica, a que respondiam as trombetas. Ficaram os Indios espantados de tal maneira, que depois pediam ao Padre Navarro que lhes cantasse como na procissão fazia”.[15]
Nóbrega ainda elogia o padre Navarro a respeito da facilidade que teve para ensinar algumas crianças cânticos religiosos: “À noite ainda faz cantar aos meninos certas orações que lhes ensinou em sua lingua delles, em logar de certas canções lascivas e diabolicas que d’antes usavam”.[16]
Além da música, os jesuítas adaptaram nas missas peças teatrais baseadas em passagens dos Evangelhos. Eles escreviam essas peças em latim ou português e depois traduziam para o idioma nativo. Os índios gostavam de participar dessas encenações, pois os jesuítas permitiam que eles dançassem e cantasem da mesma forma como faziam em suas comemorações de vitórias guerreiras.[17]
Essas estratégias deram certo, como podemos ver em mais um trecho da carta do Padre Manuel: “Os mininos desta casa acustumavão cantar pelo mesmo toom dos Indios, e com seus instromentos, cantigas na lingua em louvor de N. Senhor, com que se muyto athraião os corações dos Indios”.[18]
O padre José de Morais conta que, em aldeias situadas desde a Amazônia até o Peru, havia nas igrejas muitos instrumentos musicais, tais como órgão e harpa e que os próprios nativos dessas regiões sabiam tocá-los.[19]
Marcos Holler, doutor em musicologia pela Unicamp considera que, embora seja difícil determinar a extensão do legado artístico dos jesuítas, a atuação musical deles “certamente influenciou a formação da cultura brasileira ou de identidades culturais regionais”.[20] Dizer se esse legado é positivo ou negativo é difícil, pois a musicalidade brasileira perdeu sua identidade há muito tempo e os ritmos contemporâneos, bem como suas letras, não mais expressam suas raízes jesuíticas, se é que já expressaram.
O legado cultural
O maior legado cultural dos jesuítas é o da arte barroca, estilo que predominou durante período colonial brasileiro. Podemos encontrar grandes exemplos dessa cultura na arte sacra, evidenciada em estátuas, pinturas e outras obras feitas principalmente para a decoração de igrejas, além da própria arquiterura dessas igrejas.
O barroco teve sua origem na Itália entre os séculos XVI e XVII, na mesma época em que estourava a Reforma Prostestante e teve grande utilidade para a Igreja Católica na Contrarreforma. Tal estilo conseguia influenciar os sentimentos das pessoas. Pinturas de Cristo açoitado, crucifixos ensanguentados, pessoas com olhar piedoso, dentre outras, eram capazes de estimular o estado emocional dos que as visualizavam.[21]
O estilo barroco europeu foi sendo aprendido pelos brasileiros e depois de algum tempo foi tomando características nacionais. Esta herança pode ser vista nas obras de Mestre Ataíde e principalmente de Aleijadinho, bem como na arquitetura de algumas cidades históricas do nordeste, de Minas Gerais e do Rio Grande do Sul. Cidades como Ouro Preto, Diamantina, Congonhas, Salvador, Olinda e São Luís são exemplos desse legado. Elas foram classificadas como Patrimônio Mundial da Humanidade pela Organização das Nações Unidas para Cultura, Ciência e Educação – UNESCO.
O legado pedagógico
Um dos assuntos mais comentados acerca dos jesuítas é sobre o legado pedagógico. Existem centenas de livros a esse respeito, sem contar os milhares de trabalhos acadêmicos e é um fato incontestável.
Os missionários inacianos tinham por principal propósito “a propagação da fé e o progresso das almas na vida e doutrinas cristãs”[22]. Para que os nativos compreendessem essa fé os índios precisavam aprender a ler e a escrever. Ao longo de 20 anos, pelo menos cinco escolas de instrução elementar (Porto Seguro, Ilhéus, São Vicente, Espírito Santo e São Paulo de Piratininga) e três colégios (Rio de Janeiro, Pernambuco e Bahia) foram fundados pelos jesuítas. Além disso, eles ajudaram na fundação de cidades, dentre elas Salvador e São Paulo.
A principal crítica sobre a área pedagógica ou de doutrinação, como chamam alguns, se dá a respeito dos interesses da coroa portuguesa que enxergava no processo de educação dos índios uma espécie de domesticação dos mesmos. Sendo eles “amansados” seria mais fácil tirar vantagens econômicas da exploração agrária, latifudiária e escravista.
Outra crítica comum é feita no tocante à aculturação dos índios, conforme podemos verificar nas palavras da Professora Solange Zotti, Doutora em Educação na área de História, Filosofia e Educação pela UNICAMP: “praticamente toda a cultura pré-‘descobrimento’ foi massacrada, sufocada, reprimida (...) ocorrendo com isso, toda uma transformação, tanto em relação à produção dos bens materiais, quanto em nível de valores, costumes e crenças”.[23]
Entretanto, o que não é tão comentado assim é a forma como os índios eram constantemente citados pelos missionários: sem capacidade para ter fé, feras, bestas e mais próximos dos brutos animais do que os homens, dentre outras. Vendo a dificuldade que estava sendo ensiná-los, Nóbrega disse que
“A ordem que desejamos é fazer juntar o gentio, este que está sujeito em povoações convenientes, e fazer-lhes favores em favor de sua conversão, e castigar neles os males que forem para castigar, e mantê-los em justiça e verdade entre si como vassalos d’El-Rei, e sujeitos à Igreja (...) e desta maneira podiam ir cada dia ganhando gente e sujeitando-a ao julgo da razão”.[24]
O padre José de Anchieta compartilhava desse pensamento e disse que “nenhum ou certamente muito pouco fruto se pode colher deles, se a força e o auxílio do braço secular não acudirem para domá-los e submetê-los ao jugo da obediência. O que faz com que, como vivam sem leis nem governo”.[25]
A aparência piedosa dos padres logo se vai quando descobrimos que usaram de subterfúgios mais bestiais e animalescos do que o que eles mesmos abominavam dos ditos índios, torturando, segregando e forçando-os a trabalho escravo, sob o pretexto de catequiza-los. Em outros casos chegaram a apoiar o extermínio de tribos inteiras.[26]
Apesar de todas essas críticas, não podemos negar que os jesuítas foram os mentores da educação brasileira. Encontramos um pouco desse legado em universidades famosas tanto nacional como internacionalmente como a Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC-RJ, a Universidade Católica de Pernambuco – UNICAP e vários outros colégios famosos.
O legado religioso
Conforme vimos, os jesuítas adotaram estratégias pragmáticas e com isso conseguiram batizar milhares de indígenas em poucos anos. Entretanto, esses mesmos supostos neófitos, não haviam tido uma genuína conversão, pois pouco tempo depois de terem recebido os ensinamentos cristãos voltavam a seus costumes pecaminosos,[27] por serem “inconstantes e não lhes entrar a verdadeira fé nos corações”.[28]
O sucesso missionário dos jesuítas foi superficial, aparente e insustentável. Essa ineficácia se deu por alguns motivos: primeiramente porque a igreja portuguesa demorou muito a enviar novos missionários ao Brasil e quando mandou durante o reinado de D. João III, o fez com péssimos representantes e isso quem diz é o próprio Manuel da Nóbrega: “cá há clérigos, mas é a escória que de lá vem”.[29]
Além disso, os batismos eram realizados com muita facilidade. O pastor Elben César fez uma observação pertinete sobre esse assunto: “o missionário europeu aplicava o batismo (...) não necessariamente porque o candidato se tornara cristão, mas para que ele se tornasse cristão (...) nem sempre havia alegria no céu quando alguém era batizado, mas certamente havia alegria na corte”.[30] Devia ser frustrante ver os nativos retornarem a costumes antigos como o narrado:
“Estes fazem umas cabaças a maneira de cabeças, com cabellos, olhos, narizes e bocca com muitas pennas de côres que lhes apegam com cera compostas à maneira de lavores e dizem que aquelle santo tem virtude para lhes poder valer e diligenciar em tudo, e dizem que falla, e à honra disto inventam muitos cantares que cantam diante delle, bebendo muito vinho de dia e de noite, fazendo harmonias diabolicas. Tem para si que seus santos dão a vida e a morte a quem querem“.[31]
Além dos índios brasileiros, havia a leva de escravos africanos. Se observarmos a mistura dessas três culturas dentro do campo religioso, conseguimos entender o porquê do grande misticismo que tem o povo brasileiro. O já citado historiador Dr. Ronaldo Vainfas, comentou na mesma entrevista que, “a ‘feitiçaria’ foi se moldando como religiosidade multiétnica desde o século 17, em especial as mesclas entre um catolicismo popular e diversas crenças africanas”.
Ainda segundo ele, um dos motivos para que isso tenha acontecido é porque a Igreja colonial sempre foi fraca, com o clero reduzido e com a maioria dos padres muito despreparados. Quando a Igreja se fortaleceu, no século XIX, em meio ao processo de “romanização” já era tarde, pois a “forma das identidades religiosas no Brasil se fez com moldes para crenças plurais”.
O legado religioso dos jesuítas foi um cristianismo superficial, nominal, sincrético, místico, supersticioso e completamente deformado, para não dizer falso. Dessa faceta religiosa colhemos frutos até os dias de hoje.
Considerações finais
Com a chegada dos europeus ao “Novo Mundo”, muita coisa nova também chegou com eles. Anchieta conta que, no ano de 1562 sobreveio uma grande enfermidade que causou a morte de aproximadamente 30.000 pessoas entre índios e escravos num espaço de quase três meses.[32] Além de doenças, os colonizadores também trouxeram violência física, emocional, sexual e conceitos corruptos ao Brasil.
Se pesarmos na balança toda a herança adquirida durante a fase do Brasil colônia, observaremos que os jesuítas tiveram de fato, grande peso e extrema importância na formação do processo pedagógico do nosso país. Já o reflexo religioso dessa pedagogia não é bom, pois enquanto atuavam em sua catequese, não tiveram força e nem sabedoria para impedir que o sincretismo se alastrasse pelas terras brasileiras.
Esse sincretismo não impactou apenas o catolicismo – que tem fiéis participantes, ainda que esporadicamente, de terreiros de umbanda, centros espíritas e de outras religiões distintas do cristianismo – mas também ao protestantismo, que em suas dissidências permitiu a entrada de práticas animistas e místicas, disfarçadas em um pseudo-pentecostalismo.
O legado pedagógico foi sendo aperfeiçoado com o passar dos anos, embora ainda esteja bem longe do que realmente é o desejável, mas o legado religioso precisa ser revisto, pois os impactos negativos continuam manchando o autêntico cristianismo.
Referências
[1] LOYOLA, Inácio de. Exercícios Espirituais. 365.1, 13ª regra.Edições Loyola, 1990.
[2] CÂMARA, Jaime de Barros. Apontamentos de História Eclesiástica. Vozes, 1957, p.267.
[3] A Certidão de Nascimento de um País. Disponível em: http://www.senado.gov.br/senado/ilb/BrasildasLetras/mod1_01.html. Acesso em 06 de Junho de 2013.
[4] PEREIRA. Paulo Roberto. Os três únicos testemunhos do descobrimento do Brasil. Lacerda Editores, 1999, p. 58.
[5] CÉSAR, Elben M. Lenz. História da Evangelização do Brasil. Dos Jesuítas aos neopentecostais. Ultimato Editora, 2000, p. 23.
[6] VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos pecados; moral, sexualidade e inquisição o Brasil. Nova Fronteira, 1997, p. 26.
[7] NÓBREGA, Manuel. Cartas do Brasil e mais escritos. Ao Padre Simão Rodrigues, p. 20.
[8] Ibid, 15 de abril de 1549, p. 78. Ele chama de “Negros” aos índios, os “negros da terra”.
[9] ANCHIETA, José de. Cartas; correspondência ativa e passiva. Loyola, 1984, p. 383.
[10] Entrevista com Ronaldo Vainfas. Disponível em: http://www.sescsp.org.br/sesc/revistas/revistas_link.cfm?Edicao_Id=424&Artigo_ID=6454&IDCategoria=7453&reftype=2. Acesso em: 03 de Maio de 2013.
[11] XAVIER, M. E. S. P.; RIBEIRO, M. L S, NORONHA, O. M. História da educação: a escola no Brasil. FTD, 1994, p.41.
[12] SWEET, David. Misioneros Jesuitas y Índios "Recalcitrantes" en la Amazonia Colonial. IN Portilla, Miguel León et alii (orgs). De palabra y obra en el nuevo mundo. Volume 1: Antropología y etnología. Siglo XXI de España Editores, 1992. pp. 272-276;
[13] MONLEVADE, João Antônio; SILVA, Maria Abádia. Quem manda na educação no Brasil? Idea, 2000, p. 12.
[14] NÓBREGA, Manuel. Cartas do Brasil e mais escritos. Ao Padre Simão Rodrigues, p. 66.
[15] Ibid, p. 86.
[16] Ibid, p. 105.
[17] EISENBERG, José. As missões jesuíticas e o pensamento político moderno: encontros culturais, aventuras teóricas. UFMG, 2000, p. 84.
[18] NÓBREGA, Manuel. Cartas do Brasil e mais escritos. Ao Padre Simão Rodrigues, p. 39.
[19] Morais, José de. História da Companhia de Jesus na extinta província do Maranhão e Pará. Editorial Alhambra, 1987 [1759], p. 364.
[20] HOLLER, Marcos. Os jesuítas e a música no Brasil colonial. Unicamp, 2010, p. 12.
[21] DE LA FLOR, Fernando. Pasiones Frías – Secreto y disimulación en el Barroco Hispano. Marcial Pons. 2005, pp. 113-122.
[22] O’MALLEY, John W. Os Primeiros Jesuítas. UNISINOS, 2004, p. 39.
[23] ZOTTI, Solange Aparecida. Sociedade, Educação e Currículo no Brasil: dos jesuítas aos anos de 1980. Plano, p.14.
[24] NÓBREGA, Manoel da. Cartas do Brasil, 1549-1560 – Cartas Jesuíticas I. Itatiaia, 1988, p. 173.
[25] ANCHIETA, José de. Cartas, informações, fragmentos históricos e sermões. Itatiaia, 1988, p. 55.
[26] SWEET, David. Op. Cit. pp,, 290-291.
[27] ANCHIETA, José de. Op. Cit. p. 102.
[28] LEITE, Serafim. Diálogo sobre a conversão do gentio. União Gráfica, 1954, p. 48.
[29] NÓBREGA, Manuel da. In: HOORNAERT, Eduardo et al. História da igreja no Brasil. Vozes, 1992, p. 184.
[30] CÉSAR, Elben M. Lenz. História da Evangelização do Brasil. Dos Jesuítas aos neopentecostais. Ultimato Editora, 2000, p. 57.
[31] CORREIA apud NAVARRO, Azpilcueta et al. Cartas Avulsas (1550-1568). Itatiaia, 1988, pp. 123-124.