Finalmente chegamos ao último ponto do arminianismo: a perseverança dos santos. Esse assunto é também conhecido como “segurança da salvação” ou “segurança eterna”. Os assuntos discutidos aqui, dizem respeito à possibilidade de apostasia do cristão e à potencial perda da salvação. Se o cristão pode perder sua salvação, como podemos ter certeza dela, visto que esta é uma doutrina pregada tanto por calvinistas quanto por arminianos? Será que “uma vez salvo, salvo para sempre”? Champlin comenta que, essa questão “é um antigo campo de batalha da teologia cristã, com exércitos bem postados de ambos os lados, atrás de seus textos de prova bíblicos”.[1]
Este é, talvez, o ponto mais difícil de se discutir, pois envolve muitos conceitos e a forma como conceituamos as terminologias pode fazer uma enorme diferença. Se perguntarmos, por exemplo, um verdadeiro cristão perde sua salvação? Seria possível que um arminiano dissesse inequivocamente: claro que sim! Todavia, se ele é um verdadeiro cristão, ele permanece selado com o Espírito Santo, penhor (garantia) da nossa salvação. Em contrapartida, se perguntarmos: um verdadeiro cristão pode cair da graça, apostatar-se da fé e desviar-se de Cristo, vindo nesse caso a perder a salvação? Aí a pergunta muda de figura, pois estamos posicionando o questionamento para uma perseverança condicional do cristão.
Vamos deixar para responder a essas perguntas mais adiante. Por enquanto é válido comentar que o arminianismo clássico não opinou claramente a esse respeito. O arminianismo wesleyano, por sua vez, diz que sim, o cristão pode cair da graça. E o calvinismo defende que o cristão (o verdadeiro) nem cai da graça e nem perde sua salvação. Portanto, para finalizarmos nossos estudos, vale a pena verificarmos todas as posições e chegarmos numa conclusão o mais biblicista possível. Vejamos...
Artigo IV – Remonstrância
“Que aqueles que são enxertados em Cristo por uma verdadeira fé, e que assim foram feitos participantes de seu vivificante Espírito, são abundantemente dotados de poder para lutar contra Satã, o pecado, o mundo e sua própria carne, e de ganhar a vitória; sempre – bem entendido – com o auxílio da graça do Espírito Santo, com a assistência de Jesus Cristo em todas as suas tentações, através de seu Espírito; o qual estende para eles suas mãos e (tão somente sob a condição de que eles estejam preparados para a luta, que peçam seu auxílio e não deixar de ajudar-se a si mesmos) os impele e sustenta, de modo que, por nenhum engano ou violência de Satã, sejam transviados ou tirados das mãos de Cristo [Jo 10.28]. Mas quanto à questão se eles não são capazes de, por preguiça e negligência, esquecer o início de sua vida em Cristo e de novamente abraçar o presente mundo, de modo a se afastarem da santa doutrina que uma vez lhes foi entregue, de perder a sua boa consciência e de negligenciar a graça – isto deve ser assunto de uma pesquisa mais acurada nas Santas Escrituras antes que possamos ensiná-lo com inteira segurança.”
A posição calvinista
Para os calvinistas, não há possibilidade do verdadeiro cristão[2] cair da graça, pois sua perseverança final está “fundamentada na eleição eterna de Deus”.[3] É o que vimos em nosso primeiro artigo. Ensinar algo que contrarie esse posicionamento, gera uma inconsistência lógica. Se Deus em Seus decretos eternos e soberanos elegeu o salvo, realmente não faz sentido que este caia da graça. Alguns até poderiam pensar na possibilidade de uma predestinação para a apostasia, mas na lógica calvinista não espaço para esse pensamento, visto que os demais pontos estão interligados.
Já que nosso assunto é a perseverança dos santos, vejamos algumas definições dessa doutrina na visão calvinista. Hoeksema define-a como sendo “uma ato da graça de Deus pelo qual ele preserva os crentes e santos em Cristo Jesus, em seu poder por meio da fé, até o fim para a salvação e glória, de forma que eles lutam o bom combate da fé, e de forma que nunca possam cair da graça uma vez que receberam.”[4]
A. A. Hodge, por sua vez, define-a como “a contínua operação do Espírito Santo no crente, pela qual a obra da graça divina, iniciada no coração, tem prosseguimento e se completa. Os crentes continuam de pé até o fim, porque Deus nunca abandona sua obra.”[5]
A definição de Berkhof não é diferente: “A doutrina da perseverança dos santos tem o sentido de que aqueles que Deus regenerou e chamou eficazmente para um estado de graça não podem cair nem total nem definitivamente, mas certamente perseverarão nele até o fim e serão salvos para toda a eternidade”.[6] Trata-se da “contínua operação do Espírito Santo no crente, pela qual a obra da graça divina, iniciada no coração, tem prosseguimento e se completa.”[7]
Berkhof diz, ainda, que a doutrina da perseverança “não pretende ensinar apenas que os eleitos serão certamente salvos no final, (...) mas ensina mui especificamente que aqueles que uma vez foram regenerados e chamados eficazmente por Deus para um estado de graça, jamais poderão cair completamente desse estado e, daí, deixar de alcançar a salvação eterna, apesar de poderem, às vezes, ser dominados pelo mal e cair em pecado.”.[8]
Uma vez definida a doutrina, podemos verificar que a posição calvinista realmente não concebe a ideia de que o verdadeiro cristão possa cair da graça. O Cânone 5.9, do Sínodo de Dort, por exemplo, declarou que, “os crentes podem estar certos e estão certos dessa preservação dos eleitos para a salvação e da perseverança dos verdadeiros crentes na fé.” Ainda segundo o cânone, “esta certeza ocorre de acordo com a medida de sua fé, pela qual eles creem que são e permanecerão verdadeiros e vivos membros da Igreja, e que tem o perdão dos pecados e a vida eterna.”
A confissão de fé de Westminster declara que, “os que Deus aceitou em seu Bem-amado, os que ele chamou eficazmente e santificou pelo seu Espírito, não podem decair do estado da graça, nem total, nem finalmente; mas, com toda a certeza hão de perseverar nesse estado até o fim e serão eternamente salvos.” Conforme já vimos, “esta perseverança dos santos não depende do livre arbítrio deles, mas da imutabilidade do decreto da eleição, procedente do livre e imutável amor de Deus Pai, da eficácia do mérito e intercessão de Jesus Cristo, da permanência do Espírito e da semente de Deus neles e da natureza do pacto da graça”.
Bem, na prática, vemos pessoas que chegam em nossas igrejas, ficam cheias de fé e acabam depois de certo tempo abandonando a Cristo. Como o calvinismo explica isso? Ferreira e Myatt comentam que, a posição calvinista “não ensina que todos que professam a fé cristã são sustentados em sua peregrinação para o céu”, pois “a apostasia é um perigo real dentro da comunidade cristã. Muitos já professaram as realidades do evangelho como verdadeiras, mas, em algum momento, abandonaram a fé e morreram fora da igreja e longe dos ensinos evangélicos.”[9]
Destarte, o calvinismo faz distinção entre os verdadeiros e os falsos cristãos. Os primeiros não apostatam da fé, pois receberam a fé salvadora. Todavia, o segundo grupo tem algum tipo de fé espúria ou temporária. Os que “apostatam da fé”, portanto, na verdade não apostatam da fé, pois não tinha fé salvadora para se apostatarem.
Segundo os calvinistas, é isso que João queria dizer em sua primeira epístola quando declarou a respeito dos gnósticos: “Saíram dentre nós, mas não eram dos nossos; porque, se fossem dos nossos, teriam permanecido conosco; mas todos eles saíram para que se manifestasse que não são dos nossos” (1 Jo 2.19). Só que para admitirmos isso, João teria que se contradizer no verso 24: “Portanto, o que desde o princípio ouvistes, permaneça em vós. Se em vós permanecer o que desde o princípio ouvistes, também vós permanecereis no Filho e no Pai.” (grifos meus).[10]
Um dos maiores problemas relacionados a esse tipo de pensamento é uma tendência ao antinomianismo, ou seja, um relapso para com a santificação. Algumas pessoas ficam psicologicamente confortadas com a “segurança” da sua salvação que vivem como se não houvesse problema nenhum praticar o pecado. Gosto das palavras de Ferreira e Myatt: “Afirmamos que não existe perseverança sem santificação, pois não existe justificação sem regeneração. Toda árvore boa produz fruto bom.”[11]
A posição arminiana clássica
A posição arminiana clássica não difere “exatamente” da posição calvinista no tocante à perseverança dos santos. Digo isso porque Armínio não chegou a se posicionar se o cristão pode ou não cair da graça. Vejamos algumas de suas considerações sobre a perseverança dos santos em suas declarações a respeito da Confissão Holandesa e do Catecismo de Heidelberg.[12]
Armínio começa suas ponderações dizendo que, depois que a pessoa é regenerada, ela recebe a capacitação de Deus para lutar contra o pecado e contra as tentações do inimigo de nossas almas. Não se trata, portanto, de uma capacidade própria, mas de uma capacitação do Espírito Santo. Nas palavras de Armínio, “as pessoas que foram enxertadas em Cristo pela fé verdadeira, e foram, dessa forma, feitas participantes de seu Espírito vivificante, possuem poderes [ou força] suficientes para lutar contra Satanás, o pecado, o mundo e sua própria carne, e obter a vitória sobre estes inimigos - todavia não sem a assistência da graça e o mesmo Espírito Santo.”
Essa capacitação também vem da ajuda de Cristo, que “pelo seu Espírito, as assiste em todas as suas tentações, e lhes proporciona a pronta ajuda de sua mão; e, visto que elas se encontram preparadas para a batalha, imploram sua ajuda, e se não estiverem em falta com elas mesmas, Cristo as preserva de cair.” Jesus disse que ninguém arrebata Suas ovelhas de Suas mãos (Jo 10.28) e Armínio concorda com isso, quando diz: “Então não é possível que sejam, por quaisquer das astutas ciladas ou poder de Satanás, seduzidas ou arrancadas das mãos de Cristo.”
Satanás e suas hostes malignas não são nem de longe mais fortes que nosso Cristo. A ideia dualista[13] ensinada pelos movimentos de batalha espiritual, de que o diabo está numa constante queda de braço com Deus é errada, é um sincretismo do maniqueísmo.[14] Nós, arminianos, não cremos que o diabo, juntamente com seus anjos caídos, tenha poder para tomar uma ovelha das mãos de nosso Sumo Pastor. A ideia é se a própria pessoa, por negligência, influência ou outros fatores internos e/ou externos, possa vir a decidir abandonar a Cristo.
Armínio não tinha isso ainda delineado e disse: “...julgo ser útil e será um tanto necessário em nossa primeira assembleia [ou Sínodo], estabelecer uma diligente pesquisa nas Escrituras, se não é possível que alguns indivíduos, pela negligência ao abandonar o começo de sua existência em Cristo, apegar-se novamente ao presente mundo mau, desviar da sã doutrina que lhes foi uma vez entregue, perder uma boa consciência, e fazer com que a graça divina seja ineficaz.”
O próprio Armínio nunca havia ensinado que “um verdadeiro crente pode, total ou finalmente, abandonar a fé, e perecer”, mas a presença de passagens esciturísticas que ensinam esse aspecto o deixavam balançado, ao ponto das “respostas a elas que tive a oportunidade de ver não se mostraram, em minha opinião, convincentes em todos os pontos.” “Por outro lado”, dizia Armínio, “certas passagens são fornecidas para a doutrina contrária [da perseverança incondicional] que merecem especial consideração.”
Embora Armínio não tenha se posicionado sobre a condicionalidade da perseverança, ele sabia que tanto a salvação quanto a preservação dos santos “tem seu fundamento na presciência de Deus, através da qual Ele conhecia desde toda a eternidade aqueles indivíduos que, através de sua graça preventiva, creriam, e através de sua graça subsequente perseverariam (…) Ele também sabia quem não iria crer e perseverar.“[15]
Podemos ver que os remonstrantes, como bons discípulos, seguiram o mesmo caminho de Armínio: “...quanto à questão se eles não são capazes de, por preguiça e negligência, esquecer o início de sua vida em Cristo e de novamente abraçar o presente mundo, de modo a se afastarem da santa doutrina que uma vez lhes foi entregue, de perder a sua boa consciência e de negligenciar a graça – isto deve ser assunto de uma pesquisa mais acurada nas Santas Escrituras antes que possamos ensiná-lo com inteira segurança.”
(...)
Leia mais em: COUTO, Vinicius. Introdução à Teologia Armínio-Wesleyana. Reflexão, 2014.
Notas
[1] CHAMPLIN, Russel Norman. Enciclópedia de Bíblia, Teologia e Filosofia. Volume 6, 1991, Candeia, p. 131.
[2] Os calvinistas gostam de reforçar a expressão “verdadeiro cristão” ou outras similares, a fim de mostrar que, embora empiricamente vejamos pessoas que se apostatam da fé, esses não eram “verdadeiros cristãos”. A passagem bíblica mais usada por eles para defender essa ideia é 1 Jo 2.19: “Saíram dentre nós, mas não eram dos nossos; porque, se fossem dos nossos, teriam permanecido conosco; mas todos eles saíram para que se manifestasse que não são dos nossos.” Explicaremos essa ideia logo adiante.
[3] HOEKSEMA, Herman. Reformed Dogmatics. 2004, Volume 2, Reformed Free Publishing Association, p. 176.
[4] Ibid, p. 175.
[5] HODGE Apud FERREIRA, Franklin; MYATT, Alan. Teologia Sistemática: uma análise histórica, bíblica e apologética para o contexto atual. 2007, Vida Nova, p. 883.
[6] BERKHOF, Louis. Teologia Sistemática. 2012, Cultura Cristã, p. 501.
[7] Ibid, p. 502.
[8] Ibid, p. 501.
[9] FERREIRA; MYATT. Ibid, p. 884.
[10] O texto grifado mostra claramente a condicionalidade da perseverança. A conjunção “se” (ἐάν – translit. ean), é uma partícula condicional, que segundo o léxico de Thayer (1437 no léxico de Strong), refere-se ao tempo e à experiência, introduzindo algo futuro e potencial, portanto, não determinado. Podemos comparar o uso dessa conjunção condicional em passagens como Mt 6.22,23; 17.20; Lc 10.6; Jo 7.17; 8.54; At 5.38; At 13.41; Rm 2.25 e 1 Co 9.16, dentre outras.
[11] FERREIRA; MYATT.Op. Cit., p. 884.
[12] ARMINIUS, James. A Declaration of the Sentiments of Arminius on Revision of the Dutch Confession & Heidelberg Cathecism. In: _____. Works of James Arminius. Volume 1, Christian Classics Ethereal Library, p. 176.
[13] O dualismo é a ideia de duas forças iguais e opostas que estão em constante ou eterna disputa.
[14] Maniqueísmo movimento fundado por Mani, que foi considerado com o último dos gnósticos. Ele nasceu por volta de 216 d.C. na Babilônia e ensinava que Deus usou diversos servos, como Buda, Zoroastro, Jesus e, finalmente, ele mesmo, o profeta final (paracleto, como ele afirmava). Dizia, ainda, que o universo é dualista, isto é, existem duas linhas morais em existência, distintas, eternas e invictas: a luz e as trevas. Segundo os maniqueístas, essas duas forças cósmicas eram iguais, porém, opostas entre si. As ideias de Mani foram refutadas por Orígenes e Agostinho, sendo ainda rejeitadas pela Igreja por contrariar a Soberania de Deus em controlar todas as coisas, além de ser satanás uma mera criatura, diferentemente da forma como o consideravam.
[15] ARMINIUS, James. Op. Cit., p. 170.