Já abordamos, em nossa sequencia de artigos, dois pontos do arminianismo: o primeiro a respeito da eleição e o segundo sobre a expiação. Já foi possível constatar que, Deus elegeu corporativamente a Igreja e que Jesus morreu por todos, fazendo expiação pelos pecados da humanidade e tornando a salvação potencial. Aquele que crer será salvo, relatou Marcos, provavelmente sob a supervisão de Pedro (Mc 16.16). Essa passagem nos dá a ideia de que o homem pode escolher positiva ou negativamente a opção de Deus, pois aquele que não crer será condenado.
Como entendermos essa questão? O homem, por si só, realmente tem condições de escolher a Deus? Até que ponto os efeitos da queda atingiram a raça humana? O arminianismo ensina o livre-arbítrio e o calvinismo, por sua vez, ensina a livre-agência. Qual seria a diferença entre as duas terminologias? Veremos, doravante, a explicação da doutrina da depravação total, e as perguntas supracitadas poderão ser respondidas no decorrer de nossa exposição.
Artigo III – Remonstrância
“Que o homem não possui por si mesmo graça salvadora, nem as obras de sua própria vontade, de modo que, em seu estado de apostasia e pecado para si mesmo e por si mesmo, não pode pensar nada que seja bom – nada, a saber, que seja verdadeiramente bom, tal como a fé que salva antes de qualquer outra coisa. Mas que é necessário que, por Deus em Cristo e através de seu Santo Espírito, seja gerado de novo e renovado em entendimento, afeições e vontade e em todas as suas faculdades, para que seja capacitado a entender, pensar, querer e praticar o que é verdadeiramente bom, segundo a Palavra de Deus [Jo 15.5].”
Depravação total no Calvinismo
A palavra depravação, segundo qualquer dicionário de português, significa, nada mais nada menos, do que corrupção ou perversão. É a nossa tendência pecaminosa, nossa inclinação para o mal. É a herança de Adão: “...por um só homem entrou o pecado no mundo, e pelo pecado a morte, assim também a morte passou a todos os homens, porquanto todos pecaram” (Rm 5.12).
Essa tendência pecaminosa pode ser vista até mesmo em seres inocentes como as crianças. Qual é o pai que ensina seu filho de dois anos a mentir? Mesmo assim, quando tal criança apronta alguma travessura, ela trata logo de mentir para se livrar da bronca. Quem ensina as crianças a serem desobedientes, egoístas, briguentas, pirracentas e rebeldes? Entretanto, naturalmente, essas mazelas aparecem livre e espontaneamente, cabendo aos pais educar tais crianças. Chamamos isso de pecado original, ou seja, a herança de Adão.
Depois da queda, portanto, o homem passou a viver com tendência para o mal, nossa natureza foi corrompida e se tornou propensa para o pecado. Esses conceitos são idênticos nas teologias calvinista e arminiana. Para início de conversa, podemos citar Sproul, presidente da Reformation Bible College e pastor auxiliar da Saint Andrew’s Chapel na cidade de Sanford, na Flórida. Ele disse que não somos pecadores porque pecamos, mas que pecamos porque somos pecadores, pois herdamos de Adão uma condição corrupta de pecaminosidade.[1]
Berkhof salienta que, o pecado de Adão trouxe cinco consequências para a humanidade: 1) a depravação total da natureza humana, 2) a perda da comunhão com Deus, 3) uma consciência corrupta, 4) mortes espiritual e física e 5) expulsão do Éden e proibição de comer da árvore da vida.[2]
O reverendo Ronald Hanko, pastor da Lynden Protestant Reformed Church, comenta em uma de suas obras que, “a palavra depravação refere-se à nossa pecaminosidade e impiedade” e que usamos essa palavra “para enfatizar o fato de que somos muito ímpios aos olhos de Deus”, estando, consequentemente, “em grande necessidade de sua salvação”.[3]
Hanko acrescenta, ainda, que a palavra “depravação” associada ao uso de “total”, quer dizer três coisas: 1) que todos os homens, exceto Jesus, são depravados e ímpios; 2) todos os atos, pensamentos, vontades, desejos, escolhas e emoções de todos os homens são completamente ímpios aos olhos de Deus e 3) que todos os homens são ímpios em sua totalidade (atos, pensamentos, vontades, desejos, escolhas e emoções).
A doutrina da depravação total indica, segundo Berkhof, que “a corrupção inerente abrange todas as partes da natureza do homem, todas as faculdades e poderes da alma e do corpo” e que “absolutamente não há no pecador bem espiritual algum, isto é, bem com relação a Deus, mas somente perversão”. Não obstante, essa doutrina não implica “que todo homem é tão completamente depravado como poderia chegar a ser”, “que o pecado não tem nenhum conhecimento inato de Deus, nem tampouco tem uma consciência que discerne entre o bem e o mal”, “que o homem pecador raramente admira o caráter e os atos virtuosos dos outros, ou que é incapaz de afetos e atos desinteressados em suas relações com os seus semelhantes” e nem “que todos os homens não regenerados, em virtude da sua pecaminosidade inerente, se entregarão a todas as formas de pecado”.[4]
Em seu comentário sobre Romanos 3.13-17, o clérigo anglicano John Stott corroborou com a ideia de Berkhof ao mostrar que, a doutrina bíblica da depravação total “nunca quis dizer que o ser humano é o mais depravado possível. Tal noção e evidentemente absurda e falsa, e basta olharmos ao nosso redor, no nosso dia-a-dia para contradizê-la”, visto que, “a ‘totalidade’ da nossa corrupção tem a ver com a sua extensão (pois ela estraga e distorce todas as partes da nossa natureza humana), ao seu nível de ação (pois corrompe em absoluto cada parte de nosso ser).” Ele cita J. I. Packer, “por um lado ‘ninguém e tão mau quanto poderia ser’, enquanto que, por outro, ‘nenhum de nossos atos é tão bom quanto deveria ser’”.[5]
Depravação Total no Arminianismo
No decorrer do comentário supracitado de Stott, ele diz que, “só tem coragem de contestar [a doutrina da depravação total] quem tem sobre ela uma concepção errônea.” Ele tem razão. Os arminianos não discordam dessa doutrina como veremos a seguir. Mas, infelizmente, não sabemos se por preconceitos,[6] falta de informação[7] ou uma crença cegamente sofismática,[8] alguns teólogos calvinistas acham que o arminianismo ensina uma depravação parcial.[9]
Olson comenta que, “ao contrário da ideia popular sobre o Arminianismo (especialmente entre os calvinistas), nem Armínio nem os remonstrantes negaram a depravação total; eles a afirmaram”.[10] Sendo assim, penso que seja mais interessante observarmos declarações de teólogos arminianos a esse respeito. Vejamos:
Armínio disse:
“Neste estado [caído], o livre-arbítrio do homem para o verdadeiro bem não está apenas ferido, enfermo, inclinado, e enfraquecido; mas ele está também preso, destruído, e perdido. E os seus poderes não só estão debilitados e inúteis a menos que seja assistido pela graça, mas não tem poder algum exceto quando é animado pela graça divina.”[11]
(...)
Leia mais em: COUTO, Vinicius. Introdução à Teologia Armínio-Wesleyana. Reflexão, 2014.
Notas
Leia mais em: COUTO, Vinicius. Introdução à Teologia Armínio-Wesleyana. Reflexão, 2014.
Notas
[1] SPROUL, R. C. Boa Pergunta! 1999, Cultura Cristã, p.98.
[2] BERKHOF, Louis. Teologia Sistemática. 2012, Cultura Cristã, p. 209.
[3] HANKO, Ronald. Doctrine According to Godliness. 2004, Reformed Free Publishing Association, pp. 113,114.
[4] BERKHOF, Louis. Op. Cit., p. 229.
[5] STOTT, John. A Mensagem de Romanos. 2000, ABU Editora.
[6] Não o preconceito discriminatório, mas com ideias preconcebidas.
[7] A maioria desses críticos desconhece o arminianismo clássico, tendo portanto, um entendimento preconcebido e consequentemente superficial do assunto. Suas citações não são baseadas em Armínio, nos remonstrantes ou em Wesley. Olson comenta a esse respeito dizendo que, “Algumas acusações dos calvinistas contra a teologia arminiana demonstram quase uma completa falta de conhecimento ou entendimento da literatura arminiana clássica.”. OLSON, Roger. Arminianismo: mitos e realidades. 2013, Reflexão, p. 177.
[8] Optei em chamar dessa forma porque alguns calvinistas simplesmente debocham do arminianismo e dos arminianos, demonstrando carência do fruto do Espírito Santo. Até mesmo Solano Portela reconhece que, há no meio calvinista uma arrogância que os leva a atitudes pecaminosas como a “falta de amor no trato” com os nossos irmãos e a “falta de discernimento do que é importante” ou prioritário em nossa fé cristã. Conferir essa reflexão em PORTELA, Solano. O Pecado da Intolerância Fraternal. In: _____. 5 Pecados que Ameaçam os Calvinistas. 1997, PES, p. 7.
[9] Ver, por exemplo, Leandro Lima em LIMA, Leandro Antônio de. Calvino Ensinou a Expiação Limitada? Fides Refomata IX, n° 1 (2004), p. 79. Também conferir o equívoco de Driscoll e Breshears em dizer que a visão arminiana crê que “Nascemos pecadores, mas culpados por nossos pecados, não pelos de Adão” em DRISCOLL, Mark; BRESHEARS, Gerry. Doctrine: What Christians Should Believe. 2010, Crossway, p. 267.
[10] OLSON, Roger. Op. Cit., p. 42.
[11] NICHOLS, James (Org.). The Writings of James Arminius. Volume II, 1956, Baker, p. 252.